VULNERABILIDADE À VIOLÊNCIA SEXUAL NO CONTEXTO DA ESCOLA INCLUSIVA:
REFLEXÃO SOBRE A INVISIBILIDADE DA PESSOA COMO DEFICIÊNCIA

1. Introdução

Violência sexual contra a criança é crime e sua punição é prevista no Código Penal Brasileiro. Contudo, a maioria dos casos ocorre em ambientes familiares à vítima e, por isso mesmo, deixam de ser percebidos ou, quando o são, não são denunciados e julgados. Dessa forma, a vítima pode ficar anos à mercê do adulto-agressor e, como veremos neste artigo, desenvolver inúmeros problemas que prejudicarão sua vida social, escolar, de relacionamentos os quais, em muitos casos, constituirão a raiz da deficiência, segundo a literatura. Entre as vítimas de abuso sexual estão as pessoas com deficiência.

O abuso sexual é um tema extremamente delicado porque envolve abordar assuntos íntimos sobre a vida sexual das pessoas, situação que gera vergonha, indignação e muita dor aos familiares quando eles assumem expor os agressore(a)s que, na maioria dos casos, são membros de suas famílias. O abuso sexual é um crime que acontece em qualquer camada social, envolve pessoas com nível educacional distinto e sempre resulta em prejuízos significativos para a vítima.

Neste artigo abordaremos como a pessoa com deficiência é um alvo de agressores e constitui uma vítima fácil porque pode ser incapaz de se expressar, como no caso das pessoas surdas ou de pessoas com deficiência mental; pode estar imobilizada, como no caso de pessoas com deficiências físicas ou pode até mesmo não reconhecer o agressor, como no caso de cegos. Aqui, portanto, dirijo o foco de nossa atenção especificamente ao grupo social constituído pelas pessoas com deficiência por causa de sua vulnerabilidade ao abuso sexual, tema ainda pouco explorado e debatido na América Latina.

O argumento aqui defendido é o de que a vulnerabilidade das pessoas com deficiência à violência sexual tem como raiz dois fortes  fatores: primeiro sua invisibilidade na malha social e, segundo, o fato de que a condição ‘deficiência’ oferece segurança ao perpetrador do abuso sexual porque ele tem consciência de que o risco de desvelamento do crime e de denúncia é insignificante: quem vai acreditar em uma pessoa com deficiência? Como ela vai explicar o que aconteceu?...

Para tratar deste tema de fundamental relevância no contexto atual da educação inclusiva, neste artigo, primeiro clarifico o abuso sexual enquanto conceito. A seguir, apresento os sinais que indicam que o abuso sexual pode ter ocorrido (ou está ocorrendo). Na seção seguinte, faço uma análise acerca da invisibilidade social das pessoas com deficiência da malha social, a partir da qual sua vulnerabilidade à violência sexual se configura e, finalmente elaboro uma reflexão sobre o papel da escola no engajamento com o tema, na promoção da prevenção, identificação e denúncia de abuso sexual.

Com esta reflexão viso inserir o fenômeno do abuso sexual contra as pessoas com deficiência no debate sobre o desenvolvimento de sistemas educacionais inclusivos, pois a função da escola e dos educadore(a)s é também promover e defender os direitos de seus estudantes dentro e fora dos espaços escolares, assegurando  dessa forma as condições necessárias para o combate dos fatores que geram barreiras à escolarização e à aprendizagem.

2. Clarificando o conceito de abuso sexual

O Centro de Estudos de Atendimento Relativo ao Abuso Sexual (CEARAS) e do Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância do ABCD (CRAMI), esclarece que o abuso sexual não é definido por um toque, violência física ou a falta de consentimento, mas pela expressão ou realização da:

‘sexualidade vinculada ao desrespeito ao indivíduo e aos seus limites, a troca de sua postura de sujeito a uma de objeto dos desejos do outro. (.) Assim, o abuso sexual de crianças, o incesto e o assédio denunciam um jogo de poder onde a sexualidade é utilizada de forma destrutiva, constituindo-se num desrespeito ao ser humano. Nestes três casos, pode não existir a violência física, mas são relações que implicam em outro tipo de violência, como a social e a psicológica. O abuso sexual afeta, ao mesmo tempo, a saúde física e mental e o direito individual de se dispor da própria sexualidade e privacidade.’ (2000, sem pág.)

No artigo ‘Horror e Covardia’ de Claudia Gisele (2004), abuso sexual é definido como:

‘um crime caracterizado por uma relação de poder [que] ocorre mediante um jogo, ou ato sexual, em que o agressor visa obter satisfação sexual e usa o poder que tem para impor seu desejo. O convencimento pode ser através de violência, chantagem ou indução.’ (p.38)

Nesse sentido, o abuso sexual pode ocorrer em qualquer contexto onde há crianças, jovens e adultos, seja na família, na escola, no consultório médico. O abuso sexual pode ocorrer com pessoas que pertencem a diferentes camadas sociais, do rico ao muito pobre e os agressores, em geral, são pessoas com níveis de escolaridade distintos, na maioria dos casos próximos à vítima. Isto quer dizer, que é um sério erro acreditar que o abuso tem maior prevalência nas camadas populares. A violência sexual não é uma característica da estratificação sócio-econômica e a desmistificação desta crença é fundamental para se assegurar que todas as vítimas sejam igualmente protegidas.

É interessante aqui destacar que as camadas populares são as que mais protegem as vítimas de abuso, conforme elucida a professora Lúcia Cavalcante Williams, coordenadora do Laboratório de Análise e Prevenção da Violência da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar ):

‘existe um predomínio de casos registrados entre as classes menos favorecidas. No entanto, essas famílias são as que mais denunciam. É mais raro famílias ricas enfrentarem o problema.’ (Giselle:38)
As famílias ricas têm status social, privilégios econômicos e poder político que certamente estão na base da omissão de ocorrências de abuso sexual por meio de denúncia pública. Colocado de forma simples, as famílias economicamente privilegiadas têm mais a perder do que as pobres, mas isso, de forma alguma, significa que os ricos não sejam agressores sexuais (!). Muito pelo contrário, como vimos, o abuso sexual implica uma relação de poder sobre pessoas mais vulneráveis (crianças, jovens, empregado(a)s, subalternos, etc.) a fim de obter a satisfação de desejos sexuais. Com base nisso, podemos depreender que o sentimento e a convicção do próprio empoderamento constituem elementos inerentes às camadas sociais em situação de vantagem sócio-econômica, as quais provavelmente fazem uso mais freqüente de seu poder do que o pobre e, além disso:
‘famílias das classes média e alta podem ter melhores condições para encobrir o abuso e manter o muro do silêncio.’ (Cartilha sobre Abuso e Violência Sexual:56)

Há diferentes formas de abuso sexual e o ato, mesmo em diferentes graus de proximidade física, caracteriza-se como abuso...

2.1. Classificação do abuso sexual

O abuso sexual pode se configurar por meio de diversas ações, todas violentas em sua essência, contudo não são necessariamente ações fisicamente violentas. Assim, o abuso pode se caracterizar como:

  1. Abuso Verbal: envolve conversas sexualmente estimulantes que despertam interesse ou que chocam;
  2. Exploração sexual: a vítima é levada manter relações sexuais em troca de pagamento ou outros ganhos (alimento, vestimenta, brinquedo, etc.);
  3. Estupro: violência física com penetração (vaginal);
  4. Atentado violento ao pudor: ocorre a violência física sem a penetração; a vítima é obrigada a fazer sexo oral, anal ou outros atos libidinosos;
  5. Exibicionismo: exposição da genitália para provocar reações adversas, de choque na vítima.
  6. Voyerismo: ‘Voyeur’ é uma palavra em francês e significa observador oculto, escondido que sente prazer em observar ações, objetos ou atos sexuais.
  7. Assédio sexual: somente ocorre nas relações de trabalho e educacionais, nas quais existe uma relação hierárquica entre o molestador e a vítima o agressor para obter vantagens sexuais exerce poder sobre o sujeito de seu desejo; ameaçando-o(a) para conseguir o que quer. (Giselle, 2004:38)

Todas estas experiências de abuso sexual, na maioria das vezes, ocorrem dentro de casa, imediações da residência, escola e, em alguns casos, no ambiente de trabalho. Entre 85 a 90% dos casos registrados de abuso sexual, a violência é perpetrada por pessoas conhecidas, como pai, mãe, parente, vizinho, amigos da família, colegas de escola, babá, professor, médico, etc. (Cartilha Abuso e Violência Sexual, s/d:55). Esses dados iluminam que a crença de que ‘um estranho’ representa um perigo maior para as crianças é falsa e, portanto, perigosa.

Drezett e colegas estudaram, entre 1994 a 1999, 617 vítimas de abuso sexual do sexo feminino, das quais 71 eram crianças menores de 10 anos e 546 adolescentes entre 11 e 20 anos de idade. O foco da pesquisa foi colocado sobre os mecanismos e fatores relacionados ao abuso sexual em meninas e adolescentes (Drezett et al. 2001:4-6). Os dados revelam que:

No caso de crianças com
idade até 10 anos

No caso de adolescentes
entre 11 e 20 anos de idade

46,5% foram vítimas de atentado violento ao pudor

84.5% foram abusadas por agressores identificáveis, geralmente do núcleo familiar

em 42.3% o abuso ocorreu nas suas residências das crianças

90.8% sofreram estupro

72.3% foram violentadas por desconhecidos

foram vitimadas durante atividades cotidianas:
 34.8% no trabalho
 28.4% na escola e em
28% na do agressor.

Crenças vigentes sobre o abuso sexual são perigosas porque levam as pessoas que deveriam proteger a vítima a protegerem o agressor, o qual se sente confortável e seguro para continuar a violência por muito tempo, as vezes anos. Crenças infundadas, portanto, devem ser combatidas e substituídas por conhecimentos consistentes sobre a realidade acerca deste crime e, a escola pode assumir esta tarefa sem dificuldade, pois é o espaço social próprio da formação humana. Atualmente há inúmeras diretrizes internacionais (ONU 1989, ONU 2008) e nacionais (Brasil 1988; Mas 1990) que promovem e defendem os direitos da criança e do jovem contra toda forma de discriminação e violência.

2.2. Crenças sobre abuso sexual

No caso do abuso sexual, crenças dizem respeito às histórias e idéias (concepções, conceitos) que as pessoas (grupos, sociedade) acreditam ser verdadeiras, sem que as mesmas, de fato, o sejam. As crenças (Cartilha Abuso e Violência Sexual, s/d:55-57) mais comuns acerca do abuso sexual e que constituem sério risco de proteção do agressor em detrimento da vítima  são:

2.2.1.Crenças sobre o agressor
  1. o ‘estranho(a)’ representa maior perigo, do que o ‘conhecido(a)’ (um familiar, um vizinho) ―como vimos com os dados da pesquisa acima, constitui uma crença falsa (!);
  2. o agressor é um ‘psicopata tarado/depravado sexual que todos reconhecem nas ruas’ e assim fica fácil proteger os mais vulneráveis;
  3. o autor da violência é um homem mais velho ou um alcoólatra ou um drogado;
  4. o agressor é ‘homossexual ou retardado mental’;
  5. o agressor é um ‘pedófilo’ ―adulto que sente apelo sexual por crianças― que tem características próprias que o identificam;

Tal estereótipo do abusador é um problema porque cria as bases para a sua impunidade. Na maioria das vezes, os agressores são pessoas normais e queridas pelas crianças e adolescentes, sendo que a maioria também é heterosexual e mantém relações sexuais com adultos, ‘normalidade’ sexual que obviamente ajuda a mantê-lo(a) seguro pois qual mãe (pai) desconfiará de um marido/pai (esposa/mãe) com quem mantém relações sexuais regulares? Os outros ‘tipos’ (pedófilo, tarado, alcoólatra, drogado) podem ser ―fisicamente― qualquer pessoa, assim não há como identificá-los.

2.2.2.Crenças sobre a criança
  1. a criança mente e inventa que está sendo abusada sexualmente;
  2. as crianças com deficiência fantasiam experiências sexuais que não devem ser levadas a sério pelo adulto;
  3. a criança ‘consente’ o abuso porque gostou, somente quando a criança diz ‘não’ é que se caracteriza o abuso sexual;
  4. a criança com deficiência que foi abusada sexualmente esquecerá e superará a experiência;
  5. a criança, jovem ou adulto com deficiência não tem uma vida sexual ativa, portanto, não precisam receber orientações sobre este assunto;
  6. as crianças com deficiência são pouco atraentes e, desta forma, não correm risco de abuso sexual.
  7. crianças e adolescentes somente revelam o ‘segredo’ se forem ameaçadas com violência.

É fundamental enfatizar que a criança raramente mente: apenas 6% dos casos são fictícios (Cartilha Violência e Abuso Sexual, s/d:55). Quando se verifica que houve de fato uma invenção sobre um possível abuso, com freqüência, os depoimentos são oferecidos por crianças maiores que querem tirar alguma vantagem da situação, mas isso não é comum!

Quando a criança compartilha uma experiência de abuso sexual e o adulto quer detalhes sobre a mesma, a fim de verificar sua veracidade, a interação entre adulto e criança/jovem não deve se dar através de ameaça, pois isto vitimiza ainda mais a criança, que somente compartilhará ‘o segredo’ quando se sentir confiante, segura e apoiada. 

O autor da violência sexual tem total responsabilidade pela agressão, qualquer que seja a mesma e, sempre que uma criança falar sobre alguma atividade sexual ocorrida entre ela e pessoas conhecidas, sua fala não deve ser desconsiderada. Muito pelo contrário, é fundamental compreender que qualquer indício de violência sexual deve ser cuidadosamente investigado, e uma vez constatado o crime, denunciar em todos os casos, mesmo e principalmente quando envolver alguém próximo seja ele homem ou mulher, tenha o abuso acontecido com uma menina ou um menino.

A orientação sexual de pessoas com deficiência deve ser a mesma oferecida à qualquer outro grupo social e ter a função de desenvolver a compreensão e a conscientização sobre os riscos de se tornarem vítimas de abuso. Constitui sério erro acreditar que por terem deficiências, essas pessoas sejam assexuadas, não sintam interesse por atividade sexual e, pior ainda, não têm direito à vida sexual. Da mesma forma, constitui grave engano considerar que por terem deficiências, essas pessoas terão obsessão por sexo, apresentarão comportamentos sexuais desviados ou não serão suficientemente atraentes. A sexualidade humana se desenvolve e amadurece em qualquer ser humano nas várias etapas da vida, ou seja, as pessoas com deficiência apresentam desenvolvimento sexual como qualquer outro ser humano (SCS 2002:28).

Aqui, considero apropriado destacar que, entre os desvios sexuais existentes, há indivíduos que se estimulam apenas com a visão de pessoas com deficiência e, portanto, é um erro acreditar que essas pessoas não são objeto de interesse sexual ou erótico de pessoas sem deficiência. Lia Crespo (Bengala Legal, 2000), em sua palestra sobre Devotee: descoberta e  informação, esclarece a partir de suas pesquisas que:

“além de não se tratar de ‘casos isolados’, [há] toda uma terminologia que [define] o fenômeno e suas características. Existem os devotees{1} que são pessoas (homens ou mulheres, hetero ou homossexuais) que se sentem sexualmente atraídas por pessoas com deficiência. Há também os pretenders{2}, que além de serem devotees, sentem-se sexualmente estimuladas quando fingem ser deficientes, utilizando, em público ou privadamente, equipamentos como cadeiras de rodas, muletas, bengalas, aparelhos ortopédicos, Além disso, existem os wannabes{3}, que são devotees que desejam tornar-se, de fato, deficientes.”

2.2.3.Crenças sobre o ato violento - o abuso
  1. o abuso sexual pode ser identificado com facilidade porque a vítima apresentará lesões corporais;
  2. abuso sexual é o mesmo que estupro.

Nem sempre o abuso é fisicamente violento ou desagradável à vítima, mas nem por isso deixa de ser uma ação criminosa, porque o que o define é o poder que o agressor exerce sobre a vítima a fim de satisfazer seus desejos sexuais.  Por exemplo, funcionários de uma organização que atende pessoas com deficiência, em um estado no Nordeste brasileiro, recebeu uma adolescente com deficiência mental de 12 anos.

‘Desde o inicio observou-se que a Juliana (nome fictício) tinha um comportamento extremamente reservado e sua capacidade de comunicação parecia muito comprometida: ela praticamente não falava. Nas sessões de terapia, Juliana chorava e se recusava a interagir. No entanto, quando chegava no horário em que o padrasto vinha lhe buscar, ela demonstrava uma certa ansiedade e dizia repetidas vezes: ele está chegando... Quando finalmente o padrasto chegava, Juliana imediatamente dava sua mão a ele e ia embora feliz, mas calada. Em atividades que envolviam higiene pessoal, Juliana não queria participar, não permitia que a ajudassem. Um dia, uma outra cliente da organização informou à coordenação de que se surpreendeu ao ver Juliana ‘conversando sem parar com o padrasto no ônibus’. Todos se surpreenderam porque estavam certos de que ela tinha um sério comprometimento de linguagem e fala! O tempo passava e a suspeita permanecia, mas nada foi feito. Em outra oportunidade, o padrasto de Juliana se atrasou e uma funcionária disse à Juliana que ela teria que ficar na instituição caso ele não viesse, ao que a menina respondeu com uma crise de choro e gritos. Todos ficaram perplexo ao observar a imediata  interrupção do choro, a limpeza dos olhos e a calma de Juliana ao ver seu padrasto chegando... Após alguns anos, Juliana foi encaminhada para o setor de atividades profissionalizantes onde encontrou-se com colegas de sua faixa etária e, aos poucos, contou em detalhes as experiências sexuais com seu padrasto... um abuso que não gerava marcas físicas por não ser violento, mas que com certeza provocou sérios danos à Juliana. Sua mãe então foi chamada, informada, negou o fato e retirou a Juliana da instituição.’

Qualquer ação para o enfrentamento do abuso sexual contra as crianças e jovens com deficiência devem, portanto, levar em conta as crenças, a fim de romper com percepções incorretas e infundadas. Pessoas com deficiência, exatamente como qualquer outro ser humano devem ser ouvidas, acreditadas e protegidas contra qualquer tipo de violência, mesmo quando como no caso da Juliana, a violência seja ‘sexualmente prazerosa’ para a vítima. O fato de o abuso não se caracterizar como violência e não provocar lesões corporais não significa que o crime seja mais brando ou menos importante!

Como já ficou claro abuso sexual sempre provoca ‘lesões’, sejam estas visíveis ou invisíveis e, por isso, qualquer vítima de abuso sexual emite sinais que precisam ser conhecidos, percebidos, identificados e analisados com cuidado, a fim de que medidas cabíveis sejam tomadas.

2.3. Sinais de abuso sexual contra crianças com deficiência

Como já podemos depreender através da literatura, em qualquer circunstância, a pessoa com deficiência está vulnerável à ‘sedução’ e ao assalto sexual onde quer que esteja, mesmo (e principalmente!) quando parece estar protegida em casa. Constitui um alvo fácil para o agressor: a pessoa com deficiência com freqüência estará isolada; pode não ter desenvolvido habilidades lingüísticas, não enxergar ou andar; pode não entender o que se passa e participar ingenuamente de atividade sexual induzida. Dessa forma, é fundamental que os familiares, os cuidadore(a)s, os educadore(a)s e a sociedade civil organizada (ONGs, etc), cada vez mais estejam conscientes dos riscos de violência sexual contra essa população e aprendam a reconhecer sinais que indiquem a ocorrência do abuso, assim como os procedimentos legais para proteger a vítima, mesmo quando isso implica denunciar alguém próximo...

Pelo contato diário com a criança, a comunidade escolar, em particular, os docentes, estão em posição de observar comportamentos diferenciados que um de seus alunos manifeste e buscar apoios para protegê-los. Por exemplo, a história abaixo foi narrada por uma professora:

‘João (nome fictício) era um aluno comum, de 8 anos. Um pouco quieto talvez, João participava das aulas e raramente faltava. Subitamente, João começou a faltar nas aulas. A professora procurou informações e a mãe informou que João não esteve bem, estava adoentado. João retorna às aulas mais quieto e com uma expressão triste. Além disso, com freqüência, pede para ir ao banheiro. A professora então tenta obter informações do aluno que não as fornece. A professora então conversa discretamente com os coleguinhas de João e descobre que ‘parece que ele tem um sangramento’ no órgão genital... A partir daí a professora, sem saber direito quais os procedimentos, procura descobrir uma forma de ajudar o aluno.’ (narrado por uma professora de 2ª série de uma escola municipal de São Paulo)

Os sinais estão ‘lá’ para serem vistos, mas precisamos aprender como vê-los, dando significado a eles... A relação de sinais abaixo apresentada foi construída a partir de inúmeras fontes (Burke, Bedard y Ludwig 1998; Cartilha Crianças com Deficiência s/d; Cartilha Mitos e Realidade sobre o Abuso Sexual contra Crianças com Deficiência s/d) e revelam a ampla gama de indicações acerca da ocorrência de violência sexual (que está ocorrendo ou que já ocorreu):

  1. alteração no comportamento/sentimentos: timidez, tristeza, medo e agitação, isolamento;
  2. manisfestar muito interesse em sexo ou apresentar comportamento sexualizado não condizente com a idade;
  3. tocar o próprio corpo ou de outros de forma regular;
  4. apresentar rejeição ou temor quanto ao próprio corpo, por exemplo ao realizar as atividades de higiêne;
  5. brincadeiras sexuais agressivas;
  6. dificuldade de ligação afetiva e amorosa;
  7. sono agitado com pesadelos recorrentes;
  8. tentativa de suicídio;
  9. auto-agressão;
  10. depressão ou baixa auto-estima;
  11. lesões corporais ou hematomas;
  12. presença de DSTs ou sintomas de baixa imunidade (a criança começa a ficar doente sem uma causa clara) talvez causada pelo vírus HIV/AIDs;
  13. gravidez súbita;
  14. engajamento  em trabalho sexual (prostituição);
  15. vício em substancias ilícitas ou lícitas;
  16. dificuldade de manter uma relação sexual saudável;

Os mesmos sinais devem ser procurados para pessoas com deficiência e não atribuir tais sinais à deficiência, como é comum!  O estudo exploratório realizado no Peru e Paraguai pela Save the Children-Suécia (2002) Crianças com Deficiência e o Abuso Sexual ilumina que

‘meninas e meninos com deficiência estão expostos a maiores condições de risco, tanto na sua integridade física como mental, tanto no âmbito familiar como no seu meio social cotidiano. As testemunhas no estudo mostram uma diversidade de casos de maus tratos físico, exploração, abandono, etc.´

De acordo com o Centre for Developmental Disability Health Victoria (s/d), não há diferenças significativas entre o desenvolvimento sexual de pessoas com & sem deficiências. As necessidades e desejos sexuais são os mesmos entre aqueles que têm deficiência de desenvolvimento ou intelectual e o resto da comunidade. No entanto, como as oportunidades de experiências desse grupo social são, em geral, extremamente limitadas, as pessoas  com deficiência irão ‘necessitar de assistência e apoio para compreendera complexidade das relações humanas e os direitos e responsabilidades da sexualidade, assim como isso pode ser incorporado em suas vidas.’ (p.01).

A maioria dos assuntos relevantes relativos à sexualidade deve, portanto, ser discutido naturalmente, incluindo, menstruação, masturbação, homossexualidade, comportamento sexual impróprio, supressão da menstruação, esterilização, abuso sexual, e outros que sejam necessários abordar para assegurar sua compreensão e proteção. Contudo, apesar de assegurado possíveis cuidados, as condições de vida e falta de oportunidades de aprendizagens para as pessoas com deficiência tornam-nas um grupo extremamente vulnerável à violência sexual, na raiz da qual encontra-se sua invisibilidade social.

2.4. Invisibilidade social da pessoa com deficiência e vulnerabilidade à violência sexual

O termo ‘invisibilidade’ começa a ser objeto de atenção no Brasil apenas em 2004, após a publicação dos resultados da pesquisa de dissertação de mestrado sobre a "invisibilidade pública" do psicólogo social Fernando Braga da Costa que, como gari, varreu as ruas da Universidade de São Paulo por oito anos. Em seu estudo, o pesquisador argumenta que as relações trabalhistas influenciam relações onde a alteridade inexiste e a ‘invisibilidade pública’ resulta de percepção prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho. Isto quer dizer que ao enxergar-se somente a função de gari não enxerga-se a pessoa. Nesse sentido, a condição de ‘invisibilidade’ ocorre quando um individuo (ou grupo social) é, inadvertida ou intencionalmente, ‘cortado fisicamente’ da rede social, que o vincula à sociedade, tornando-o um subgrupo ilhado (Wikipédia a, 2008), como os dados do referido estudo indicam que ocorre com os garis da USP.

De alguma forma, a função de gari ‘obscurece’ a pessoa física de Braga e, por analogia, podemos inferir que a deficiência obscurece a pessoa-sujeito de direito que possui uma deficiência, independentemente de suas características. A condição imposta pela deficiência, então, destituí da pessoa sua essência como ser humano, pois suas outras dimensões humanas passam a não importar mais, uma vez que quando se constata (ou se pressupõe) a deficiência, esta condição generaliza-se rapidamente sobre a pessoa e toma seu lugar... Assim, a história e o currículo da pessoa com deficiência são descartados e, com eles, são ignorados e negligenciados seus direitos à voz, a participação e ao desenvolvimento pleno tornando-a cada vez mais vulnerável a toda a sorte de violência e discriminação, mesmo na vida adulta.

Segundo a Save the Children da Suécia (2002) o grau de vulnerabilidade das crianças com deficiência ao abuso sexual é proporcional ...

  1. à existência de carência afetiva e emocional causada por contínua segregação social e isolamento, que podem favorecer a ação de um possível abusador;
  2. à falta de capacidade física para defender-se: a criança, jovem ou adulto com deficiência, em geral, estará em posição de desvantagem física com relação ao adulto;
  3. à falta de habilidades comunicativas para relatar o que aconteceu: o não desenvolvimento de habilidades lingüísticas, obviamente, constituem um problema no compartilhamento da experiência e principalmente em corte quando o caso é denunciado;
  4. à falta de estímulos favoráveis ao desenvolvimento de suas habilidades, auto-proteção, independência e autonomia;
  5. à falta de informações básicas e orientações sobre a sua própria sexualidade: em geral, a sexualidade da pessoa com deficiência é considerada inexistente por parte dos adultos com os quais convivem. As crianças não têm oportunidades para aprender limites ou modelos sobre como agir frente ao assédio sexual;
  6. à falta de estrutura familiar e acompanhamento sistemático: isto é, a criança é tratada com indiferença ou é super-protegida, acaba sendo envolvida em conflitos ou relações de dependência complexas que acabam camuflando a violência sexual;
  7. à falta de recursos físicos e emocionais para enfrentar o abuso em geral: a sociedade civil e as instituições ainda estão pouco preparadas para lidar com este assunto sensível e não dispõe de meios efetivos para identificá-lo, denunciá-lo e combatê-los através de dispositivos legais eficientes.

A invisibilidade das pessoas com deficiências é tão sólida que por falta de dados estatísticos oficiais produzidos a partir de levantamentos nacionais, desde os anos 70 as estimativas oferecidas pela UNESCO (1993) têm sido sistemáticamente adotadas nos documentos de governos dos países do Sul as quais estabelecem que:

‘em torno de 10% da população de possui deficiência e, destas, menos de 1% têm acesso a qualquer tipo de tratamento ou educação.’

Esse dado por si só confirma a ‘invisibilidade’ desses indivíduos nos múltiplos contextos da vida humana. No Brasil, estudos iluminam que as pessoas com deficiência ainda permanecem literalmente ausentes da malha de relações humanas e sociais, seja em casa, na escola, na comunidade (SCS 2003; Ferreira, 2002) e no trabalho. Por exemplo, o dados do estudo comissionado pelo Banco Mundial, que conduzi em 2003, sobre a situação educacional das crianças e jovens com deficiências  dentro e fora das escolas no estado de Pernambuco, revela que:

‘do total de 123.597 alunos(as) matriculados nas [150] escolas visitadas [no estado de Pernambuco], apenas 1.584 - 1.28% da população - são pessoas com deficiências que estudam em classes especiais ou integradas em salas de aula regular.  Considerando-se os objetivos do presente diagnóstico, é importante ressaltar, que selecionamos principalmente escolas que oferecessem serviço de educação especial, portanto, se todas as escolas da rede pública de Pernambuco fossem visitadas, este percentual provavelmente seria menor do que o que encontramos. (p. 38. Grifo meu)

Nosso argumento aqui ‘e o de que a invisibilidade das pessoas com deficiência está na raiz de sua vulnerabilidade à violências, argumento confirmado pelo Relatório It is our world too{4}! da Assembléia Geral das Nações Unidas Sessão Especial sobre Crianças (ONU 2001), que trata das vidas de crianças com deficiências e denuncia que mundialmente milhões de crianças são submetidas a diferentes formas de violência, punição, abuso e outros que se tornam as causas de suas deficiências. O relatório afirma que os:

‘maus tratos dentro e fora da família constituem uma causa extremamente séria da deficiência tanto em países desenvolvidos como os em desenvolvimento [e podem causar] doenças mentais, desajustes sociais, dificuldades na escola ou no trabalho, comprometimentos sexuais, etc.’ (p. 09, Parecerista Especial Despuoy, 1991)

Inevitavelmente chegamos à triste conclusão de que o abuso sexual e os maus tratos sofridos por crianças com deficiência caracterizam, ao mesmo tempo, uma violação de seus direitos fundamentais e a possível causa ou comprometimento de sua deficiência. Por isso, a invisibilidade que fomenta a vulnerabilidade de crianças com deficiência é um assunto de extrema gravidade e tema que deve urgentemente constituir foco de atenção mundial para políticos, educadore(a)s, gestore(a)s, pesquisadore(a)s, terapeutas e sociedade civil organizada. E, sobretudo, promover a reflexão sobre o papel da escola na conscientização da comunidade com vistas à promoção da prevenção de violência sexual é fundamental no contexto atual, porque, segundo o documento norteador do Projeto Escolas que Protegem (MEC/SECAD 2005:05), ‘a marcante incidência da violência sexual contra crianças e adolescentes provocou, a partir da última década do século passado, uma série de reações’

A invisibilidade da pessoa com deficiência na rede de relações, caracteriza-se principalmente pela sua ausência física real, a qual, conseqüentemente, impede o estabelecimento dos laços e interações que levam qualquer indivíduo a se tornar parte de um dado grupo. Pessoas com deficiência, portanto, não vivem entre nós, não ‘con-vivem’ e literalmente não há como se tornar parte de qualquer outro grupo social.

Para as pessoas sem deficiências é impossível enxergá-las nos espaços públicos e privados, pois elas não estão lá... A ausência física das pessoas com deficiência não permite que nos familiarizemos com elas ou com suas experiências, sejam estas de sucesso ou fracasso. Não permite que pessoas sem deficiência aprendam sobre as experiências discriminatórias vividas cotidianamente por pessoas com deficiências porque desconhecem sua ocorrência e, assim, permanecem na zona de conforto do alheamento social não se tornando parte da construção de redes de proteção aos mais vulneráveis que sejam mais efetivas.

De acordo com o estudo da Save the Children–Aliança Direitos da Criança com Deficiência (SCS:21), um instrumento de defesa, a invisibilidade das crianças com deficiência se dá porque:

  1. a segregação (isolamento) e institucionalização de pessoas com deficiência são práticas muito tradicionais [e, portanto, consolidadas];
  2. as crenças e superstições tradicionais levam as famílias a sentirem vergonhas de seus filhos com deficiências [e os mantem escondidos, invisíveis para as suas redes sociais];
  3. há a falta de serviços de apoio às famílias, as quais não têm acesso a informações ou oportunidades para adquirir habilidades e melhor compreensão sobre a deficiência, [o que com muita freqüência as leva a acreditar que estão sendo castigadas por Deus’];
  4. prioriza-se o tratamento ou terapias especializadas, ao invés de oportunidades de convivência e escolarização [fundamentais ao desenvolvimento de qualquer individuo].

Essas razões estão subjacentes às práticas de segregação, isolamento e exclusão nos vários países do mundo, pobres e ricos. Dependendo das condições sócio-econômica, cultural e educacional de cada país, uma criança com deficiência  pode ter assegurado tratamento e cuidados necessários ou, pode, por outro lado, estar escondida no seio da família trancada em um quarto; pode ter sido matriculada em uma instituição especializada onde raramente recebe visita e da qual nunca sai ou pode estar matriculada em uma instituição segregada (como as escolas especiais) convivendo com outras crianças que possuem o mesmo tipo de deficiência, sem encontrar oportunidades para entrar em contato com uma ampla variedade de experiências e estímulos que a vida em comunidade possibilita.

Bieler{5} (2004:11), jornalista consultora do Banco Mundial na área de deficiência, em entrevista na qual aborda a questão da inclusão de pessoas com deficiência na região das Américas, afirmando que:

‘é claro que não podemos comparar o atendimento que o deficiente recebe nos EUA [assim como em outros paises ricos] e no Brasil [ou na América Latina]. A distância ainda é muito grande. Até porque os níveis de capacidade para resolver problemas por meio de recursos financeiros é maior nos paises desenvolvidos’.

Mesmo assegurando-se o cuidado à saúde e tratamentos necessários ao desenvolvimento da criança com deficiência, direitos garantido pelo Artigo 23 da Convenção dos Direitos da Criança (ONU 1989), o isolamento social e educacional de crianças, jovens e adultos com deficiência é uma violação do direito humano de conviver com os pares e ter oportunidades igualitárias para seu desenvolvimento pleno. A ausência física na vida regular reduz as possibilidades de aprendizagens e desenvolvimento necessários à vida adulta independente e produtiva. Embora em muitos paises, tenha havido progressos significativos com relação aos direitos das pessoas com deficiência e sua inserção nos vários espaços sociais, infelizmente, ainda há muito a ser feito para que elas, de fato, em condições de igualdade e sejam reconhecidas como sujeitos de direito.

O ponto chave aqui é que se não há formas de participação nos vários contextos e segmentos da sociedade não haverá acesso a oportunidades de experiências social, afetiva, lúdica, escolar, amorosa, sexual, etc. Não há, então, como a pessoa com deficiência se desenvolver em direção à sua potencialidade latente, assim como acontece para qualquer ser humano sem deficiências. A invisibilidade social das pessoas com deficiência, portanto, constitui uma barreira à luta pelos seus direitos, pois conduz inevitavelmente ao não reconhecimento da violação, condição que, por sua vez, não oferece as bases a procedimentos de denúncia com vistas à proteção desta pessoa contra qualquer tipo de abuso sexual.

3. Considerações Finais

3.1. Reflexão sobre o papel da escola com orientação inclusiva na prevenção e combate ao abuso sexual

A Declaração de Salamanca (UNESCO 1994) define escolas inclusivas como organizações que acomodam todas as crianças, independentemente de suas características individuais. Essas organizações educacionais assumem compromisso particular com a garantia de acesso, participação e aquisição (CSIE, 2000) de conhecimentos e experiências aos estudantes em risco de serem empurrados para as margens da educação, ou seja, os estudantes com necessidades educacionais especiais. Entre estes podemos citar no Brasil, os meninos e meninas de rua, os afro-descententes, os jovens em situação de conflito com a lei. Na América Latina, podemos identificar as crianças com deficiência, crianças de grupos étnicos distintos, os migrantes, e os pobres entre outros.

O conceito de inclusão se fundamenta no princípio de que ‘educação é um direito humano’ e, defende que ‘a diversidade humana e as diferenças individuais são reconhecidas como recursos valiosos para promover a aprendizagem significativa de todos’ (Ferreira y Martins, 2007:27). Ou seja, todos têm valor e são acolhidos igualmente na escola, portanto, a comunidade escolar (gestores, docentes, estudantes, famílias) coletivamente se responsabiliza por assegurar oportunidades igualitárias para todos no processo de escolarização, considerando-se as diferenças individuais.

A escolarização e a experiência cotidiana escolar constituem etapas fundamentais no processo de formação humana porque é durante este período que são plantadas as bases para oportunidades e chances que um adulto encontrará em sua vida. Assim, participar plenamente da vida na escola e se sentir parte da comunidade escolar ―sentimento de pertencimento― constituem elementos chave do processo de inclusão: um estudante que é vítima de qualquer forma de violência é uma criança com necessidades educacionais especiais e, portanto, em risco de exclusão do processo educacional porque não está em condições de participar plenamente da escolarização e da vida escolar...
Uma criança que é vítima de abuso sexual, como vimos, apresentará graves seqüelas psicológicas, emocionais, físicas e outras que diretamente afetarão sua vida escolar. Assim, é fácil defender no contexto do movimento pela inclusão em educação que:

  1. Toda criança que sofre abuso sexual deve ser também foco de atenção da escola e
  2. É da responsabilidade da equipe gestora identificar meios e recursos necessários para assegurar a proteção da criança, assim como o encaminhamento de denuncia aos órgãos competentes.

Respondendo às diretrizes internacionais e, ao mesmo tempo, reconhecendo a gravidade do fenômeno violência sexual no território nacional, o governo federal lançou em 2002 o Programa de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil no Território Brasileiro (PAIR) que tem caráter transversal e envolve diversos ministérios. No âmbito do programa, em 2006, lançou o Projeto Turismo Sustentável na Infância do Ministério do Turismo e o Projeto Escola que Protege da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) do Ministério da Educação. (MEC/SECAD:05).

O Projeto Escola que Protege possui abrangência no que diz respeito ao seu foco porque visa à defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de violência física, psicológica, negligência e abandono, abuso sexual, exploração do trabalho infantil, exploração sexual comercial e tráfico, por meio da prevenção. Para tanto, o projeto:

‘qualifica profissionais de educação [dos municípios que aderiram ao projeto] por meio de formação nas modalidades à distância e presencial, para uma atuação adequada, eficaz e responsável, no âmbito escolar, diante de situações de evidencias ou constatações de violência sofrida pelos educandos.’(p.06)

O projeto, portanto, já assume a relevância do papel da escola no combate a toda forma de crime e violência sexual contra as crianças e adolescentes. Contextualizando tal ação no contexto da inclusão em educação, imediatamente podemos destacar a importância das escolas com orientação inclusiva neste movimento de proteção às crianças, nas quais a comunidade escolar coletivamente está comprometida com:

‘melhorar a escola para todos e combater qualquer forma de exclusão, segregação e discriminação no contexto escolar. Ao mesmo tempo, a inclusão diz respeito à promoção de oportunidades igualitárias de participação. Numa escola inclusiva todos são considerados iguais e têm o mesmo valor. Assim, a escola que é inclusiva está em contínuo processo de mudança para assegurar o acolhimento de cada um dos alunos ou dos membros da comunidade escolar, bem como a sua aprendizagem.’ (Ferreira y Martins, 2007:22)

Então, faz sentido educacional, político e social incorporar o tema transversal violência sexual como componente do conteúdo curricular abordado tanto na sala de aula, quanto nas feiras de ciência ou outras atividades e, nesse processo, garantir que seja dado um enfoque especial à proteção de pessoas com deficiência contra qualquer forma de violência, uma vez que como vimos sua invisibilidade e vulnerabilidade são significativas se comparadas a outros grupos sociais.

O argumento colocado neste artigo é o de que a vulnerabilidade das pessoas com deficiência à violência sexual tem dois fortes  fatores como raiz: primeiro sua invisibilidade na malha social e, segundo, o fato de que a condição ‘deficiência’ oferece segurança ao perpetrador do abuso sexual porque ele tem consciência de que o risco de desvelamento do crime e de denúncia é praticamente inexistente. Se a criança e o jovem com deficiência não estiver matriculado na escola ―como é o caso na maioria das vezes!― sua chance de compartilhar a experiência, de obter ajuda e proteção são também praticamente inexistentes. Nesse caso, portanto, a escola e a convivência com os pares tem papel crucial na identificação dos sinais indicadores do abuso, como aconteceu no caso de Juliana ou de João. Se a criança e o jovem com deficiência forem aluno(a)s regularmente matriculados na escola, então, a escola deve inserir em suas componentes curriculares orientações sobre a questão da sexualidade e também sobre os riscos do abuso sexual.

As ações de prevenção e proteção desenvolvidas nas escolas devem ser orientadas pela Convenção dos Direitos da Criança (ONU 1989) e documentos nacionais que legislam a ocorrência de crime de violência contra a criança:

‘1. Os estados-partes tomarão todas as medidas legislativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto estiver sob a guarda dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.
2. Essas medidas de proteção deverão incluir, quando apropriado, procedimentos eficazes para o estabelecimento de programas sociais que proporcionem a assistência adequada à criança e a pessoa encarregada de seu cuidado, assim como outras formas de prevenção e identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior de caso de maus-tratos a crianças acima mencionadas e, quando apropriado, intervenção judiciária.’ (ONU 1989:20)

Temos consciência de que há escassez de recursos humanos especializados, materiais, institucionais, educacionais, de saúde, etc. são imensos em países do Sul. Contudo, não podemos mais em nome de ‘outras prioridades’ negligenciar o fenômeno da violência contra crianças e jovens que, por suas características perversas, são essencialmente hediondos como é o caso do abuso sexual. Esses crimes requerem ações imediatas por parte daqueles que, por princípio, devem proteger a criança: pais, mães, educadores. Tais ações podem ser tímidas ou restritas ao que ‘se pode fazer agora’, mas devem ser tomadas, pois muito se aprende no processo.

Para assegurar que os direitos das pessoas com deficiência sejam, de fato, garantidos em todas as esferas sociais, em 13 de dezembro de 2006, foi aprovada por unanimidade a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU. Como convenção, este documento é orientador de políticas públicos nos países-membros que o ratificaram. Isso significa que uma vez assinada a convenção por um Chefe de Estado, o mesmo está implicitamente assumindo o compromisso com o que a mesma estabelece em seus artigos. A Convenção, então, terá papel chave na inserção do tema abuso sexual contra as pessoas com deficiência na pauta das políticas públicas e nas várias instâncias sociais e institucionais, porque destina um artigo inteiro ―ART 16― à abordagem deste tema, conformr pode ser verificado a seguir:

3.2. ‘Prevenção contra a exploração, a violência e o abuso
  1. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas de natureza legislativa, administrativa, social, educacional e outras, para proteger as pessoas com deficiência, tanto dentro como fora do lar, contra todas as formas de exploração, violência e abuso, incluindo aspectos relacionados a gênero.
  2. Os Estados Partes também tomarão todas as medidas apropriadas para prevenir todas as formas de explo­ração, violência e abuso, assegurando, entre outras coisas, formas apropriadas de atendimento e apoio que levem em conta o gênero e a idade das pessoas com deficiência e de seus familiares e atendentes, inclusive mediante a provisão de informação e educação sobre a maneira de evitar, reconhecer e denunciar casos de exploração, vio­lência e abuso. Os Estados Partes assegurarão que os serviços de proteção levem em conta a idade, o gênero e a deficiência das pessoas.
  3. A fim de prevenir a ocorrência de quaisquer formas de exploração, violência e abuso, os Estados Partes assegurarão que todos os programas e instalações destinados a atender pessoas com deficiência sejam efetiva­mente monitorados por autoridades independentes.
  4. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para promover a recuperação física, cognitiva e psicológica, inclusive mediante a provisão de serviços de proteção, a reabilitação e a reinserção social de pessoas com deficiência que forem vítimas de qualquer forma de exploração, violência ou abuso. Tal recuperação e rein­serção ocorrerá em ambientes que promovam a saúde, o bem-estar, o auto-respeito, a dignidade e a autonomia da pessoa e levem em consideração as necessidades de gênero e idade.
  5. Os Estados Partes adotarão leis e políticas efetivas, inclusive legislação e políticas voltadas para mulheres e crianças, a fim de assegurar que os casos de exploração, violência e abuso contra pessoas com deficiência sejam identificados, investigados e, caso necessário, levados à justiça. (grifo meu.)

O texto da Convenção claramente ilumina a necessidade urgente de a sociedade assumir a responsabilidade de desenvolver meios eficazes para combater a exploração, violência, abuso das pessoas com deficiência, vitimizando ainda mais suas vidas já tão expoliadas de direitos humanos. Por sua importante função social na infância e na adolescência, a escola que se pretende inclusiva deve, portanto, sensibilizar-se e sintonizar-se com a Convenção que trata dos direitos das pessoas com deficiência e, a partir de seus artigos orientadores, comprometer-se (urgentemente) com as questões emergentes que afetam esta população e requerem iniciativas sócio-política e educacional imediatas.

Pessoas com deficiência têm sido mantidas por séculos à margem dos sistemas educacionais em nome do fato de que a prioridade é a universalização da educação primária para as camadas populares. Pessoas com deficiência têm sido mantidas invisíveis na malha social porque são consideradas ‘problema’ para os que não possuem deficiências. Pessoas com deficiência têm sido impedidas de terem acesso a oportunidades de aprendizagens em nome da crença infundada de que são ‘incapazes de aprender’... A lista de impossibilidades para as pessoas com deficiência é extensa e, em todos os itens, explicita-se o triste fato de que essas pessoas não são consideradas sujeitos de direito justificando-se, assim, sua exclusão na família, nas escolas, na comunidade, no lazer, no trabalho, nas várias esferas sociais.

No contexto da desigualdade social e da falta de oportunidades para o florescimento harmonioso do ser humano, violações de todas as naturezas se manifestam na rede social, se proliferam e se perpetuam com base na ignorância, no preconceito e no medo de entender e aceitar a diferença natural aos seres humanos como uma riqueza a ser cultivada e celebrada. A violação dos direitos das pessoas com deficiência reflete as características de uma sociedade injusta que não respeita e protege os direitos de grupos sociais que vivem em situação de desvantagem. Embora existam instrumentos legais nacionais e internacionais que defendem e protegem os direitos de pessoas com deficiência, o século XXI ainda testemunha violências contra essas pessoas desde o dia em que nascem... abandono ao nascer, violência psicológica, abuso sexual, maus tratos, preconceito e discriminação durante a vida. A escola, portanto, como a instituição social cuja função é formar para o exercício da cidadania deve incorporar em sua política o compromisso tanto de abordar o tema como de assegurar a proteção de seus estudantes mais vulneráveis.

Como afirmei, com este artigo sobre o tema do abuso sexual contra as pessoas com deficiência no contexto da inclusão viso provocar o leitor, os estudiosos e todos aqueles comprometidos com o movimento pela  inclusão educacional. Com esta provocação explícita, espero ver frutos no debate sobre o desenvolvimento de sistemas educacionais inclusivos, pois a função da escola e dos educadore(a)s é também a de promover e defender os direitos de seus estudante dentro e fora dos espaços escolares, assegurando dessa forma as condições necessárias para o combate dos fatores que geram barreiras à escolarização e à aprendizagem. Incluir implica combater barreiras à participação, assim toda escola que adota o princípio da inclusão como orientador de suas cultura, política e prática, deve assumir o compromisso de criar estratégias de prevenção e combate ao abuso sexual a fim de proteger as crianças e os jovens contra qualquer ato de violência.

 

Referencias bibliográficas

 

Vecina, Mª.L. (2006). Emociones positivas. Papeles del Psicólogo, 27(1), pp. 9-17.

 

 

{1} Disponível em: http://www.ppgpsi.ufscar.br/index.php?acao=exibir_lab&id=8

{2} Em português: devotos.

{3} Em português: aqueles que fingem (to pretend=fingir), passam por algo que não são.

{4} Em portugues: querer ser. Wanna-bes é uma palavra composta constituída por dois verbos: To want = querer, e to be= ser.

{5} É nosso mundo também!

{6} Nota: Rosangela Berman Bueler é brasileira. Aos 19 anos sofreu um acidente de carro e ficou tetraplégica. É jornalista e mestre pela Universidade de Salamanca.