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RIEJS
LA PRODUCCIÓN DE SENTIDO SOBRE LA SEGURIDAD ALIMENTARIA Y NUTRICIÓN DURANTE UNA CAPACITACIÓN TÉCNICA DE LAS TRABAJADORAS DE LAS PANADERÍAS DE LA COMUNIDAD

1. INTRODUÇÃO

A Insegurança Alimentar e Nutricional no Brasil, segundo a última pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010), atinge 65,6 milhões de pessoas, em 30,2% dos domicílios participantes da pesquisa. Nestes domicílios, o nível de insegurança alimentar variava, conforme as condições de acesso aos alimentos necessários para garantia da Segurança Alimentar e Nutricional. A pesquisa encontrou 18,7% de domicílios com insegurança leve, ou seja, com comprometimento da qualidade da alimentação, 6,5% com insegurança moderada, com comprometimento da quantidade e 5% com insegurança grave, havendo a ocorrência de fome.

De acordo com Pessanha (1998), a Insegurança Alimentar e Nutricional é uma consequência da ação de diversos fatores, que podem se apresentar isoladamente ou em conjunto, sendo eles: escassez de produção e oferta de produtos alimentares; distribuição desigual de alimentos entre os membros da sociedade; baixa qualidade nutricional e contaminação dos alimentos consumidos pela população e; falta de acesso ou monopólio sobre a base genética do sistema agroalimentar. No Brasil, considera-se que o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional está inconcluso, uma vez que exige uma abordagem que considere questões de ordem econômica da cadeia agroalimentar, descrita nas etapas de produção, distribuição, comercialização, acesso e consumo de alimentos, e sua vinculação aos direitos humanos sociais, tendo à alimentação como um direito básico.

No entanto, existe ainda a premissa restrita deste conceito defendida no âmbito do Ministério da Saúde, mais especificamente no campo de atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Isto é, quando o termo da Segurança Alimentar e Nutricional assume seu campo de competência passa a ter a seguinte conotação:

Pelo controle da origem, pelo controle do processo e da formulação do produto, e pela aplicação de Boas Práticas de Higiene durante a produção, o processamento (incluindo a rotulagem), a manipulação, a distribuição, o armazenamento, a comercialização, a preparação e o uso, em combinação com a aplicação do sistema HACCP (OPAS, 2006).

Partindo do presuposto de que sua dimensão extrapola o campo do “alimento seguro” é importante ressaltar que quando voltada à garantia de direitos humanos, a compreensão de Segurança Alimentar e Nutricional é:

(...) a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (Brasil, 2004a).

Este conceito, construído no âmbito da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, por sua amplitude, abrange o anterior adotado e defendido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, já que contempla a garantia do acesso a alimentos de qualidade, dentro dos padrões estipulados. O contrário, portanto, não é possível, visto que o anterior se restringe a ações relativas à comercialização de produtos alimentícios, tendo como base as Resoluções RDC 275/2002 (Brasil, 2002) e 216/2004 (Brasil, 2004b) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Corroborando esta assertiva, Maluf (2005) afirma que a compreensão que um leigo tem sobre Segurança Alimentar pode variar do total desconhecimento até a intuição de alguns aspectos contemplados pelo conceito geral, considerando ser esta originária de uma construção histórica, em permanente mudança. Kornijezuk (2008), por sua vez, alerta em sua dissertação de Mestrado, que o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional apresenta visões controversas, podendo adquirir variados sentidos, conforme a compreensão que se tem de sua historicidade.

Avançando neste processo reflexivo, Freitas & Pena (2007), em artigo publicado acerca da produção de conhecimento sobre Segurança Alimentar e Nutricional, relatam que o sujeito agencia e interpreta sua fome em seu cotidiano, à medida que confronta a realidade externa e a subjetividade da fome, sendo a Segurança Alimentar e Nutricional uma mudança do habitual de fome. Para as autoras:

A produção de novas sensações se tornaria real quando intersubjetivada ao lado dos que têm semelhantes realidades. Ou seja, as mudanças do habitual de fome necessitam estar também no plano coletivo, com as muitas histórias individuais em interação. A passagem do sentido de fome para o sentido de Segurança Alimentar e Nutricional tem a ver com ganhos sociais, redistribuição de renda, empregos, políticas sociais, de modo a possibilitar a população carente perder a sensação de medo e vergonha pela insegurança social (Freitas & Pena, 2007, p. 78).

Por conta desta polissemia acerca do entendimento de Segurança Alimentar e Nutricional, este artigo visa compreender como ocorre a produção de sentidos sobre este tema durante o processo de formação técnica de trabalhadoras, provenientes de Padarias Comunitárias. Ressalta-se que tais pessoas vivenciam uma situação constante de vulnerabilidade social e alimentar que as caracterizam como sendo potenciais vítimas do histórico processo de Insegurança Alimentar e Nutricional.

2. METODOLOGIA

A presente pesquisa iniciou-se em abril de 2006, a partir de uma parceria entre o Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Paraná e o Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo, sendo finalizada em março de 2010. Durante esse período, 30 oficinas de formação técnica foram realizadas, das quais participaram 290 trabalhadores provenientes de padarias comunitárias. Cada oficina acolhia, no máximo, doze participantes, por conta dos módulos práticos oferecidos.

As oficinas eram dividas em módulos, sendo que para a finalidade proposta por este artigo, apenas o módulo sobre Segurança Alimentar e Nutricional será aprofundado, os demais serão apenas mencionados, visando à contextualização dos cursos. Para fins de registro das atividades desenvolvidas no módulo de Segurança Alimentar e Nutricional, relatórios técnicos eram elaborados, a cada oficina, e arquivados junto à coordenadoria do projeto de extensão universitária. Ao final das oficinas, o Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo realizava uma avaliação por escrito, junto aos participantes. Ressalta-se que apenas 12 das 30 avaliações realizadas, sobre as oficinas, foram encaminhadas à coordenação do projeto, não sendo possível fazer um diagnóstico mais completo da representação dessas oficinas para os participantes.

No decorrer do desenvolvimento das atividades referentes ao módulo de Segurança Alimentar e Nutricional buscava-se compreender o entendimento que os participantes tinham acerca desse tema. A produção de sentidos sobre o tema da Segurança Alimentar e Nutricional foi analisada por meio da abordagem francesa à Análise de Discurso, adotada neste artigo como referencial teórico e metodológico, conforme orientações explicitadas na obra “Análise de Discurso – Princípios e Procedimentos” de Orlandi (2009).

Ressalta-se que foram consideradas, para a análise de discurso, apenas os relatos e as avaliações das mulheres, por conta da representatividade das mesmas nas oficinas de formação técnica (pp. 287-290).

Os relatórios técnicos e as fichas de avaliação constituíram o corpus da análise de discurso, do qual, foram identificados, durante o processo analítico, a filiação de sentido, o interdiscurso, a incompletude, as relações de forças e a antecipação presentes no discurso das participantes. Visava-se, com essa análise, identificar as questões ideológicas, históricas e sociais, que poderiam ter afetado o dizer das participantes, bem como os deslocamentos de sentido ocorridos no decorrer do processo.

Para compreensão dos sentidos produzidos foi necessário levantar as condições de produção dos mesmos, ou seja, foi preciso contextualizar a situação em que as participantes, e o próprio curso de formação, estavam inseridos. Deste modo, foi aberta uma seção específica, neste artigo, denominada “Condições de produção do discurso”, que trata dessa contextualização. E, com vistas a facilitar a compreensão do contexto e da produção de sentidos sobre Segurança Alimentar e Nutricional, algumas considerações e análises já serão apresentadas ao longo desse tópico, se constituindo parte dos resultados dessa pesquisa.

2.1.  Condições de produção do discurso

2.1.1. Padarias Comunitárias: breve relato da sua criação

A materialização da ideia de criar Padarias Comunitárias surgiu como resposta às dificuldades enfrentadas diariamente, por inúmeras famílias provenientes de comunidades carentes de Curitiba. A iniciativa partiu de um grupo de doze mulheres, com idade superior a quarenta anos e com dificuldades para inserção no mercado de trabalho. Dentre os pontos que convergiram para este encontro, destacamos a possibilidade de discutir, de forma aprofundada, os problemas causados pela exclusão social, tais como o desemprego, a falta de alimentação e a má distribuição de renda (Knapik & Bez, 2007).

Esta constatação pode ser percebida em um documentário sobre as Padarias Comunitárias (CEFURIA, 2007), na voz de uma das mulheres participantes do processo de constituição das mesmas:

Havia muita dificuldade (.) as famílias, as mães (.) para trabalhar, encontrar emprego. Então a gente resolveu fazer um trabalho assim, para que elas pudessem trazer os filhos, trabalhar.

Ao historiar sobre este movimento Knapik & Bez (2007) resgatam que no ano de 1996, com o objetivo de buscar alternativas para melhorar as condições de vida e reduzir a fome e a miséria na comunidade, foi dado o primeiro passo para a criação daquela que seria o prelúdio de um valioso movimento, ou seja, a Padaria Comunitária. O projeto foi financiado com recursos do Fundo de Mini-projetos da Região Sul, tendo apoio da Paróquia local, do Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo e do Movimento Popular de Mulheres do Paraná. O bairro curitibano, no qual a experiência foi disparada, foi o Sítio Cercado, localizado na região sul da cidade. Este bairro, assim como outros em Curitiba, carrega consigo algumas mazelas do processo de crescimento populacional, que por sua vez, não teve o mesmo impulso dos investimentos públicos no que diz respeito à disponibilidade de serviços básicos, sobretudo às condições de moradia.

A partir do sucesso alcançado, foram feitos convites às pessoas de outras comunidades para que conhecessem o projeto e, desta forma, se sentissem encorajadas a seguir com uma possibilidade real de instalarem padarias comunitárias nas suas respectivas regiões. Visitas foram realizadas à padaria pioneira, a fim de que as informações sobre a implantação das Padarias Comunitárias e fabricação de produtos de panificação pudessem ser trocadas com os grupos interessados (CEFURIA, 2007) de modo a lhes passar a segurança deste investimento social e econômico.

De acordo com os dados divulgados pelo Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (2011) existe, na cidade de Curitiba e Região Metropolitana, vinte e sete Padarias Comunitárias em funcionamento que contam com a colaboração de mais de cem trabalhadores. A ampla divulgação e o esforço coletivo contribuíram para mudanças significativas nas vidas de dezenas de famílias. Ressalta-se ainda que  o projeto das padarias comunitárias era orientado pelos princípios da Economia Solidária, fundamentado na solidariedade, na autogestão, no resgate da cidadania, da dignidade e da auto-estima e na formação técnica e política dos trabalhadores (CEFURIA, 2011). Knapik e Bez (2007), em relato sobre esta experiência, trazem o depoimento de um dos trabalhadores vinculados a essas padarias:

A Padaria Comunitária hoje é uma forma de trabalho e apoio que as famílias excluídas deste sistema capitalista que estamos vivendo, encontraram para viver de uma maneira mais humana e solidária (p. 118).

Já Bez & Carneiro (2009) defendem que o trabalho realizado, com base na Economia Solidária, agrupa pessoas que desejam realizar alguma atividade econômica, sem manter relações de competição ou subordinação, sendo baseado na coletividade, colaboração, democracia, troca de afeto e distribuição justa do resultado do trabalho realizado. Neste sistema, as decisões são tomadas em conjunto por todas as pessoas envolvidas nas Padarias Comunitárias, e as despesas, lucros e sobras são divididos igualmente entre os trabalhadores. Além disso, os trabalhadores interagem com a comunidade, vendendo a produção a preços justos e comprando produtos produzidos ou comercializados na região, promovendo, desta forma, o desenvolvimento local (Knapik & Bez, 2007).

Ao fazer referência a um artigo escrito por Broeders (1996), Knapik e Bez (2007) descrevem que objetivos são buscados a partir desta iniciativa: garantir a sobrevivência da família; dar uma resposta imediata ao desemprego; encontrar condições de auto-sustentação para o trabalhador, sua família e grupo social no qual está inserido e; realizar uma ação concreta de solidariedade contra a fome e a miséria existentes nas periferias das cidades.

2.1.2. Participantes

As participantes do módulo de Segurança Alimentar e Nutricional, cujo resultado está expresso nesta reflexão, eram trabalhadoras das Padarias Comunitárias instaladas em Curitiba e Região Metropolitana. O gênero feminino predominante nas palavras corresponde à realidade do grupo, tendo em vista que a maioria, que se fez presente, era de mulheres. Todas decididas e dispostas a modificar a sua realidade, melhorando a situação de vida de sua família e comunidade. As falas são provenientes das discussões ocorridas durante as trinta oficinas oferecidas ao longo do projeto, bem como das fichas de avaliação realizadas ao término dessas.

Dando continuidade a esta breve caracterização, convém fazer uma ressalva sobre a ocupação destas mulheres. Antes de fazer parte das Padarias Comunitárias, elas eram cuidadoras do lar. Poucas delas tinham experimentado os benefícios (carteira de trabalho assinado, fundo de garantia e outros direitos) de um trabalho formal. As que já haviam trabalhado, em geral, tinham assumido a função de doméstica, diarista, cozinheira ou auxiliar de cozinha. As mulheres, com experiência em uma das duas últimas profissões listadas, traziam na sua bagagem a qualificação em boas práticas de fabricação de alimentos, curso obrigatório por lei para quem trabalha nesta área. As informações que as demais tinham sobre o processo de manipulação de alimentos, em geral, eram provenientes de programas televisivos, “de ouvir falar” ou, ainda, não sabiam ao certo especificar a origem de tal conhecimento. Essa informação, proveniente da incorporação, muitas vezes inconsciente, de leituras anteriores, sobre determinado assunto, denominada memória discursiva ou interdiscurso, traz elementos que permite entender a redução do termo Segurança Alimentar e Nutricional a condições higiênicas e sanitárias, realizada pelas mulheres durante as oficinas. Os relatos correspondentes a esse fato serão apresentados na seção de resultados e discussão.

As trabalhadoras e seus familiares, em geral residiam em regiões consideradas de risco social, que por sua vez, se caracteriza pela convivência permanente com condições de pobreza, desigualdade, violência e drogadição e, ainda, dificuldades de acesso aos serviços básicos como educação, saúde e oportunidade de trabalho. Para além das mazelas externas de cunho mais estruturante, algumas destas mulheres apresentavam dramas particulares que as limitavam no processo de luta, como a presença de doenças na família, o desemprego e a constante situação de vulnerabilidade alimentar. O conhecimento prévio sobre essa realidade foi importante durante a condução das atividades, uma vez que auxiliou no processo de ressignificação do termo Segurança Alimentar e Nutricional.

Durante os debates, percebeu-se o quão oprimidas eram essas mulheres. Seus parceiros as consideravam incapazes de realizar atividades remuneradas, devido à idade avançada, falta de experiência no mercado de trabalho e baixa escolaridade. A constatação deste fato – de desvalorização humana – fez com estas mulheres assumissem uma postura de passividade frente às precárias condições de vida lhes impostas e que, em muitos casos, resultavam em um processo patológico no campo psicológico levando-as a um quadro de depressão (sem necessariamente passar por um diagnóstico clínico especializado, mas por outros profissionais). A presença deste componente – depressão –trazia outras consequências, uma vez que as mulheres limitavam sua condição de sobrevivência, contentando-se com auxílios oriundos de programas da prefeitura, da paróquia local, ou ainda de instituições não governamentais que prestavam algum tipo de assistência. Assim, o ato de sair da sua casa para buscar alternativas de trabalho e geração de renda com o objetivo de mudar sua condição de vida, se tornou – para muitas destas mulheres – ato difícil, complexo e que não as levariam a lugar nenhum. Moura e Araújo (2005), em sua pesquisa acerca da produção de sentidos sobre a maternidade, perceberam esta mesma situação, onde o papel do homem era mais valorizado do que o da mulher, sendo ele o responsável pelo provimento da família, mesmo quando a renda não era suficiente para atender as necessidades básicas, recorrendo aos programas governamentais de complementação da renda.

De acordo com Curado & Menegon (2009), mesmo com as transformações da posição da mulher na família e no mercado de trabalho, ainda vigora a ideologia da domesticidade, que cria e recria a força de trabalho feminino como algo sem valor financeiro e de baixo status social (Curado, 1991 apud Curado & Menegon, 2009).

Registra-se, portanto, que esta realidade começou a ser modificada quando estas mulheres receberam convites de outras para criarem e trabalharem em Padarias Comunitárias. A troca de saberes permitiu vislumbrar um futuro com oportunidades e expectativas de mudanças significativas nas suas vidas. Elas buscaram o apoio de instituições não governamentais, grupos religiosos e/ou líderes da comunidade, os quais as auxiliaram na implantação das Padarias Comunitárias, oferecendo local para as instalações e para as reuniões do grupo, equipamentos para o processamento de produtos de panificação e cursos de formação técnica e política. O resgate desse panorama, durante o desenvolvimento do módulo de Segurança Alimentar e Nutricional, auxiliou na conscientização dessas mulheres, quanto ao papel que desempenham junto aos familiares e às comunidades, fazendo com que percebessem sua co-participação no processo de transformação social. Fato que foi percebido ao questioná-las sobre que ações são necessárias para reverter o quadro de insegurança alimentar e nutricional, descrito na seção de resultados e discussão.

2.1.3. Cursos de formação

O Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo, historicamente, é uma entidade que vem apoiando vários projetos sociais, dentre os quais o projeto das Padarias Comunitárias. Em geral, o Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo consegue equipamentos para a produção de panificados e também executa cursos de formação que envolvem técnicas de produção, boas práticas de fabricação de alimentos, noções de gestão com base nos princípios da economia solidária, segurança alimentar e nutricional, entre outros temas. Tais ações só são possíveis mediante os projetos submetidos aos editais do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Tanto os equipamentos quanto os cursos de formação são oferecidos sem custo aos trabalhadores e aos interessados em participar ou montar padarias em suas comunidades. Contudo, de forma a não caracterizar assistencialismo, é dever dos trabalhadores, uma vez capacitados, colaborar na formação de pessoas interessadas em trabalhar nas padarias.

Resgatando as fichas de avaliação dos cursos de formação realizados, encontrou-se a seguinte resposta à pergunta “Que compromissos estão dispostos a assumir?”:

Compromisso de passar o que eu aprendi no curso tecnológico; de respeitar as pessoas com amor e carinho; ensinar a quem não sabe, o que eu sei; de trabalhar com satisfação (Participante Maria [1] em Março, 2008).

Essa resposta representa o pensamento da maioria das mulheres avaliadas (92%), tendo em vista que, de maneira geral, todas responderam a esse questionamento, com o mesmo nível de comprometimento dado pela participante Maria.

De um modo geral, afirma-se que esta solicitação por parte do Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo em seguir mantendo a rede de solidariedade forte, ao que parece, não é caracterizado, por parte de quem participa do projeto, como uma exigência e/ou obrigação a ser cumprida. No entendimento das participantes, esta seria uma maneira justa de continuar com o processo de melhoria das condições de vida de outras pessoas, igualmente dispostas a iniciar seu sonho de trabalho e cidadania. Além de compartilhar o conhecimento construído durante os cursos de formação, cada padaria deveria indicar dois representantes para frequentar as reuniões do Conselho Gestor, com vistas a garantir o processo de formação continuada, seguindo com o processo de qualificação das pessoas que trabalham nas padarias.

Nas reuniões do Conselho, que ocorrem mensalmente, os participantes expõem os problemas enfrentados nas padarias, trocam experiências, tomam decisões conjuntas, planejam ações futuras e partilham as conquistas provenientes do trabalho realizado. Nestas reuniões, também eram decidas quantas e quais seriam as pessoas que participariam dos próximos cursos de formação, visto que o número de participantes era limitado, devido ao espaço destinado à parte prática.

Como dito anteriormente, estes cursos não visavam apenas à capacitação técnica dos trabalhadores, mas, sobretudo, a formação cidadã e política, sendo oferecidos em duas partes. A primeira parte era voltada à formação cidadã e política e a segunda, à formação técnica. Segundo Knapik & Bez (2007):

Cada etapa resgata a história do trabalho, à luz dos ensinamentos de Paulo Freire. Através de trocas de experiências pelo diálogo, a realidade começa a ser desvelada, surgindo assim, uma postura crítica, nova forma de percepção dos fatos históricos e a desconstrução de mitos e do ‘senso comum’ que infelizmente predomina nos nossos meios de comunicação como forma de dominação e opressão (p. 36).

As etapas relacionadas à formação cidadã e política tinham duração de oito horas, onde os seguintes temas eram abordados: A pedagogia de Paulo Freire: uma pedagogia humanizadora; O trabalho humano; das sociedades comunais ao modo de produção feudal; O trabalho no capitalismo: alienação e desumanização; As utopias em torno do trabalho: liberdade e criação; e Economia Popular Solidária: que mundo estamos construindo?

As oficinas técnicas visavam à formação para o trabalho nas Padarias Comunitárias. Acontecia mensalmente, de forma concentrada, durante uma semana, com carga horária total de quarenta horas. As oficinas ocorriam na Casa do Trabalhador que, além de disponibilizar suas instalações e equipamentos para a realização das mesmas, oferecia hospedagem e alimentação às participantes. Os módulos teóricos e práticos que constituíam as oficinas técnicas eram: Autogestão nas padarias, prática de preparo de pães e outros produtos de panificação e Segurança Alimentar e Nutricional. Os produtos desenvolvidos nas aulas práticas eram utilizados para consumo das participantes das oficinas, educadores, funcionários e moradores da Casa do Trabalhador. Parte da produção era partilhada entre os mesmos, que levavam os produtos para casa, dividindo-os com os familiares.

Ao final de cada oficina, era realizada uma avaliação, por escrito, visando identificar que contribuições a mesma trouxe para solucionar os problemas de gestão e de produção nas padarias. Cinco relatos são apresentados na sequência. Para os quatro primeiros, a pergunta feita foi: “O que você achou da oficina?” e para o último relato: “Que frutos foram gerados durante a oficina?”.

Houve troca de experiências, muita motivação. Foram feitas boas receitas, com um bom aprendizado (Participante Josefina, junho, 2006).

Fiquei feliz em dividir com vocês as minhas experiências e também receber de vocês. Muito obrigada a todas! (Marluce, outubro, 2006).

Aqui foi muito bom, aprendi novas coisas, por exemplo, empadão, bolos, etc. A partilha, trocas de experiência com os colegas, conhecimento de como trabalhar em grupo. Somos missionários, juntos nós podemos acabar com um pouco da fome e trazer um pouco de felicidade às pessoas mais carentes (Participante Lucia, junho, 2008).

Foi muito importante a amizade uma das outras, a troca de informações entre os colaboradores e alunos, convivência entre pessoas de outras regiões nos grupos, saber como trabalhar dentro da panificadora, saber direitos e deveres (Participante Odélia, junho, 2008).

Solidariedade, a integração das pessoas em união, troca de conhecimentos, auxílio às necessidades de quem precisa e a doação de quem pode doar e doar-se, o ensinamento aos menos esclarecidos, dando às pessoas a esperança de um mundo melhor e uma vida mais humana (Participante Júlia, março, 2008).

Nos relatos selecionados, pode-se perceber que as participantes embutiram, em seus discursos, a importância do diálogo como ferramenta de transformação social. As palavras destacadas em negrito, pelos autores deste artigo, apontam para a necessidade de partilha e troca de saberes, proporcionada pela participação ativa das participantes, que, conjuntamente, e com base na realidade concreta vivenciada, construíram novos conhecimentos, ressignificando a situação em que estavam inseridas. O último relato foi apresentado, apesar da pergunta referente a esse ser diferente das demais, por conta da essência contida nele, que se assemelha a dos outros relatos.

A percepção que as mulheres tinham da necessidade de compartilhar saberes, ser solidária e se comprometer com a sua comunidade também foi verificada em 88% das respostas dadas pelas participantes das demais oficinas.

2.1.4. O tema da Segurança Alimentar e Nutricional

Durante o planejamento das oficinas de formação que seriam disponibilizadas às trabalhadoras das Padarias Comunitárias, ocorrido em uma das reuniões do Conselho Gestor, surgiu a necessidade de criar um módulo que abordasse Boas Práticas de Fabricação de Alimentos visando atender, minimamente, as exigências normativas dos órgãos de vigilância sanitária. O objetivo era que as trabalhadoras aprendessem a manipular, de forma adequada, a matéria prima e os produtos fabricados em várias etapas: compra, armazenamento, higienização e manipulação - sem colocar em risco de doença o consumidor final. Além disso, também eram previstas atividades lúdicas que trabalhassem o contexto real das suas condições de moradia de modo a não causar constrangimento entre as participantes das oficinas.

A proposta foi apresentada a uma professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Paraná (UFPR), durante uma reunião do Conselho Gestor, ocorrida no ano de 2006. A mesma foi encaminhada, em reunião plenária, a outras docentes do departamento, sendo firmada a parceria e elaborada, conjuntamente com os representantes do Conselho Gestor, a estrutura básica do módulo. Os assuntos levantados durante a reunião foram: 1- Causas da Insegurança Alimentar e Nutricional; 2- Consequências da Insegurança Alimentar e Nutricional; 3- Construindo propostas para minimização da Insegurança Alimentar e Nutricional; 4- Como atingir a Segurança Alimentar e Nutricional e sua relação com as Padarias Comunitárias; 5- História e simbologia da fabricação de pães e produtos de panificação; 6- Importância da seleção dos ingredientes na produção de pães e produtos de panificação e suas funções; 7- Perspectivas futuras para as Padarias Comunitárias; e, 8- Aspectos da segurança higiênica e sanitária na produção de pães e produtos de panificação.

No início dos trabalhos, não havia um registro formal e específico deste projeto junto à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade Federal do Paraná, ficando atrelado a outro projeto de extensão, que tinha como meta a capacitação e atualização de funcionários envolvidos na área de alimentação e nutrição (Registro PROEC nº. 420/06). Com a expansão das atividades desenvolvidas nos anos de 2006 e 2007, optou-se por desvincular os projetos, criando e registrando um projeto específico para atender às necessidades das Padarias Comunitárias. No documento de registro, cita-se na apresentação que:

(...) a participação da população no planejamento, execução e controle de ações que gerem modelos produtivos viáveis, do ponto de vista econômico, social e ambiental, é uma forma de garantir o crescimento e desenvolvimento da comunidade. A implementação de Padarias Comunitárias, além de favorecer a geração de empregos, aumentar a renda familiar, auxiliar na formação profissional, reduzir a taxa de desemprego na região, aumentar a auto-estima do indivíduo, melhorar o estado de saúde, dentre outros pontos positivos, resgata valores culturais, éticos, de cidadania, de direitos e de igualdade. Neste contexto, a capacitação de trabalhadores, vinculados às Padarias Comunitárias, contribuirá para resgatar o indivíduo de uma situação de insegurança, promovendo a manutenção e sustentabilidade do processo, garantindo seu direito à Segurança Alimentar e Nutricional [2].

Os módulos tinham duração de quatro horas e eram desenvolvidos no formato de rodas de conversa, favorecendo a participação de todas as envolvidas, educadoras e educandas, no processo de co-construção de conhecimento pautado na problematização, trocas de experiências e reflexão crítica sobre a realidade em que as trabalhadoras estavam inseridas. Perguntas relacionadas aos assuntos listados acima eram realizadas com base no contexto de vida relatado, no início de cada oficina, durante o período destinado à apresentação das participantes. Após colocação de determinado assunto na roda de conversa, o debate era aberto e as mulheres colocavam suas opiniões e dúvidas sobre o tema. Essas colocações eram transcritas para tarjetas que ficavam fixadas na parede ou no quadro, para visualização das participantes e obtenção de consenso sobre as respostas encontradas. Nesse momento, poderia ocorrer a participação das educadoras, com vistas a tornar perceptíveis problemas ou incoerências sobre o tema. Não havendo mais colocações, por parte do grupo, sobre o assunto em questão, partia-se para um novo assunto. No entanto, o vínculo com o assunto anterior era mantido, objetivando a contextualização e a percepção, por parte das mulheres, do enfretamento, diário, às consequências geradas pela situação de insegurança alimentar e nutricional, vivenciada por elas e suas famílias.

Os módulos eram conduzidos tendo como referência o livro do professor Gôuvea da Silva. Segundo o autor:

A formação popular passa a ser concebida como as práticas socioculturais coletivamente construídas pelos sujeitos sócio-históricos inseridos em um determinado contexto concreto de realidade: fazem opções, planejam, organizam e desencadeiam fazeres, sempre comprometidos com uma determinada concepção de sociedade e de mundo. Coerentemente, o processo de construção do conhecimento decorrente dessa forma dialética de conceber a prática de formação, deve se basear na interação dialógica entre os diferentes sujeitos envolvidos – mediados pelos seus saberes e discursos – que, em busca de compreensões e de intervenções críticas sobre uma realidade concreta que requer transformações, pesquisam, constroem conhecimentos pertinentes, planejam, avaliam e realizam ações (Gouvêa da Silva, 2005, p. 23).

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Corrêa (2007), em seu artigo sobre Insegurança Alimentar, afirma que o que está implícito, quando se discute segurança alimentar, é que haja condições de vida e condições nutricionais adequadas. Contudo, durante os debates realizados nas oficinas de formação, não foi possível constatar, inicialmente, no discurso das envolvidas, que ambas as condições fizessem parte da situação de Segurança Alimentar. A condução das atividades previa que, ao final do módulo, fosse possível estabelecer tais relações a partir da contextualização dos problemas enfrentados pelas participantes.

Analisando os relatos dispostos nos relatórios técnicos arquivados, ao longo dos quatro anos do projeto, percebeu-se, em todas as oficinas de formação, que a relação entre segurança alimentar e nutricional e condições nutricionais era mais compreensível para as trabalhadoras, do que a relação desta com as condições de vida. E quando relacionada às condições nutricionais, referia-se, apenas, às condições higiênicas e sanitárias dos produtos fabricados ou consumidos.

Esta relação foi evidenciada durante a análise das respostas dadas à primeira pergunta da capacitação: “O que vocês entendem por Segurança Alimentar e Nutricional?”. As respostas dadas pelas participantes eram similares, independentemente das suas comunidades de origem ou das oficinas que participavam. De modo geral, as respostas (R) tinham a seguinte base, conforme são apresentadas abaixo.

R1: Segurança alimentar é quando o alimento não faz mal à saúde.

R2: Não tem bicho. Não tem bolor.

R3: Que não dá pra fazer nada de qualquer jeito.

R4: É sobre as bactérias, o que pode e o que não pode (referindo-se ao modo de fabricação dos produtos).

R5: E procurar conhecer também o que a gente consome, de que jeito são embalados, procurar saber de onde vem, a qualidade.

R6: Tem que ser orgânico, né?

Analisando as respostas acima, foi possível verificar que sentidos sobre segurança alimentar foram produzidos e qual a filiação destes sentidos. As respostas acima são contempladas pelo conceito de Segurança Alimentar e Nutricional, visto que o consumo de alimentos, em condições higiênicas e sanitárias adequadas, é um dos aspectos abrangidos por ele, e refere-se à qualidade física, química, biológica e sensorial dos alimentos. No entanto, o fato de apenas um dos aspectos ter sido levantado na discussão está relacionado às condições de produção do discurso. As trabalhadoras foram convidadas a participar de uma oficina de formação, cujo objetivo era aprender sobre o trabalho desenvolvido nas padarias, ou seja, noções de gestão, economia, técnicas de preparo de produtos de panificação e segurança alimentar, fatores que contribuíram para que a Segurança Alimentar e Nutricional fosse vinculada às condições higiênicas e sanitárias. Outros fatores referem-se à: participação de algumas delas em cursos de higiene pessoal e de alimentos; experiência como auxiliares de cozinha ou como cozinheiras e; veiculação na mídia de reportagens sobre cuidados no preparo de alimentos e surtos alimentares.

Esse fato tem a sua justificativa na colocação feita por Orlandi (1984), onde:

(...) uma unidade de linguagem tem tantos sentidos quantos puder efetivar no mundo. Por outro lado, há a sedimentação histórica (o produto) em termos de sua dinâmica, isto é, em condições de produção determinadas, um sentido adquire estatuto dominante em relação aos outros (p. 9).

As respostas conferidas à primeira pergunta apresentavam-se incompletas, tendo em vista que outras questões deveriam ser consideradas para que a situação de Segurança Alimentar e Nutricional fosse alcançada. Indiretamente, este era o propósito no momento da criação das Padarias Comunitárias. Esta incompletude, segundo Orlandi (2007), permite a polissemia, produzindo uma multiplicidade de sentidos, sendo:

(...) a condição da linguagem: nem os sujeitos nem os sentidos, logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados. Eles estão sempre se fazendo, havendo um trabalho contínuo, um movimento constante do simbólico e da história (Orlandi, 2009, p. 37).

Na tentativa de resgatar estes aspectos e construir conjuntamente o conceito ampliado de Segurança Alimentar e Nutricional, foram feitos outros questionamentos às participantes, incitando debates e reflexões críticas sobre a realidade vivenciada por elas. Desta forma, questionou-se: “Por que estavam frequentando a oficina?”. No geral, as respostas obtidas foram relacionadas à atualização de conteúdos e ao aprendizado de novos conhecimentos. Por mais que tenham frequentado oficinas anteriores, que abordaram a importância da troca de saberes e experiências e da participação ativa nos debates, visando à dissolução de mitos e à construção de conhecimentos capazes de transformar a realidade vivida, as participantes não conseguiam alterar a sua posição no discurso. Para elas, a figura das educadoras estava vinculada àquela que tinha as respostas prontas para todos os problemas expostos, sendo a função das educandas, escutar e anotar as soluções. Nos relatos abaixo, é possível verificar o quanto as participantes conferem o mérito do aprendizado aos educadores, além de relacionar competência com transparência da linguagem. As palavras foram grifadas pelos autores deste artigo.

Foi uma aula bem esclarecedora. (...) Elas passaram para nós o assunto em questão de uma maneira bem clara, simples (Flávia, junho, 2006).

Gostei muito do curso, foi muito bem aproveitado. (...) Professor excelente consegue explicar tudo com tanta clareza, e eu aprendi muito, não só para a padaria e sim para o dia-a-dia também (Cláudia, setembro, 2006).

Gostei muito do curso, gostei de tudo que aprendi. Foi muito boa a participação que tive com os grupos. Os professores têm muita competência para ensinar (Rosa, outubro, 2006).

Aprendemos muita coisa sobre higiene, como cuidar dos pães. As professoras foram muito boas e explicaram muito bem tudo o que precisava para tocar nossa panificadora (Roseli, novembro, 2006).

A parte teórica foi de fundamental importância e foi exposta com muita ênfase, clareza e de fácil compreensão, devido à competência das professoras e do professor (Participante Juliana, abril, 2008).

Segundo Orlandi (2009), o lugar de onde fala o sujeito é constitutivo do que ele diz, fazendo com que suas palavras signifiquem de modo diferente, conforme posição que ocupa no discurso.

Na continuação do debate, outra pergunta foi realizada: “Qual o motivo que as levaram a criar ou participar das Padarias Comunitárias?”. Visto que as condições de vida das participantes tinham sido investigadas e eram conhecidas, esta pergunta teve a intenção de levantar, por meio dos relatos, aspectos que pudessem caracterizar a situação de Insegurança Alimentar e Nutricional vivenciada pelas participantes, respectivas famílias e membros da comunidade. Na medida em que os motivos eram expostos, estes eram transferidos para tarjetas, que eram coladas em um quadro, construindo uma rede causal para a situação de Insegurança Alimentar e Nutricional, fazendo com que houvesse uma identificação com os problemas apresentados.

Neste momento do debate, a intenção das educadoras era de vincular as respostas dadas com o que caracteriza Insegurança Alimentar e Nutricional, de modo a favorecer a compreensão sobre a complexidade existente na garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada. Usou-se do mecanismo da antecipação durante a condução das perguntas realizadas pelas educadoras, que se colocaram no lugar das participantes a fim de prever o que seria dito, a partir de seus dizeres. Neste mecanismo, o sujeito coloca-se no lugar em que o seu interlocutor ouve, antecipando-se a ele, quanto aos sentidos produzidos por suas palavras. O processo de argumentação é dirigido, visando seus efeitos sobre o interlocutor (Orlandi, 2009). Na medida em que as oficinas eram realizadas, ficava mais fácil prever as respostas que seriam dadas, uma vez que as mesmas seguiam um padrão correspondente à situação de risco social vivenciada pelas mulheres.

Um apanhado das respostas dadas para esta pergunta foi realizado e os seguintes motivos foram relatados: desemprego; baixa renda familiar; problemas de saúde (entre eles depressão); falta de informação e de estudo; falta de acesso ao alimento, à educação, a condições de moradia adequada e à saúde; falta de estrutura na comunidade para a busca de emprego e qualificação; moradias instaladas em áreas de risco social; utilização de drogas ilícitas e de bebidas alcoólicas por membros das famílias; uso inadequado dos alimentos disponíveis para consumo e; ausência de padarias nas proximidades da comunidade.

Na sequência, foi abordada a seguinte questão com as participantes: “Para reverter esta situação, que atitudes estão sendo (ou devem ser) tomadas?”. Durante o debate foram citadas as seguintes ações: busca de conhecimento voltado para a melhoria das condições de vida; utilização de força tarefa na comunidade visando modificar a situação de risco; participação em clubes de troca, com a finalidade de compartilhar experiências e saberes; ser solidário aos problemas da comunidade; desenvolver um plano de ação comum, com o intuito de realizar uma ação concreta; criar oportunidade de empregos na própria comunidade; conhecer os direitos e deveres de cada cidadão; persistir sempre para alcançar a meta proposta, individual e coletiva.

Finalizando a discussão, foi indagado sobre quais seriam as consequências dessas ações. As participantes colocaram que a partir de mudanças de atitude seria possível: vivenciar uma nova experiência voltada à Economia Solidária, com ganhos para o indivíduo e para a comunidade; aumentar a renda familiar, facilitando o acesso à alimentação adequada; criar um vínculo de amizade e respeito ao próximo, resgatando a dignidade de cada cidadão; ter uma profissão, aumentando a auto-estima; gerenciar uma atividade em expansão, que garante empregabilidade aos membros da comunidade e; a ampliação do acesso ao alimento, por meio da venda dos produtos a um preço justo.

Tanto o primeiro bloco de respostas, quanto o segundo, podem ser relacionados aos temas abordados e discutidos durante a formação cidadã e política, bem como, às práticas de trabalho do grupo, indicando que o que foi dito fazia sentido e tinha significado para as trabalhadoras.

Os sentidos têm sua história, isto é, há sedimentação de sentidos, segundo as condições de produção da linguagem (Orlandi, 1984), sendo estas condições entendidas por: o falante, o ouvinte, o contexto de comunicação e o contexto histórico e social (Orlandi, 1990). No discurso é possível observar a relação entre linguagem e ideologia, não havendo discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia (Orlandi, 1994). Ao dizer, o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um lado, pela língua e, de outro, pelo mundo (Orlandi, 2009).

Tendo sido levantadas as possíveis causas e consequências da Insegurança Alimentar e Nutricional, bem como o que poderia ser feito para solucioná-la, o primeiro ponto da discussão foi retomado. Apontando para as tarjetas, confeccionadas a partir dos relatos das trabalhadoras, foi feita a seguinte pergunta: “A partir do que construímos até aqui, que elementos são necessários para garantir que se tenha Segurança Alimentar e Nutricional?”. Fazendo um apanhado geral das respostas dadas, e dos registros feitos nas tarjetas, um conceito resumido sobre Segurança Alimentar e Nutricional pôde ser construído: Acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e para todos.

Este resultado só foi possível, devido a uma postura crítica e reflexiva das participantes, para com as condições de Insegurança Alimentar e Nutricional vivenciadas, ressignificando o termo Segurança Alimentar e Nutricional a partir da filiação de outros sentidos construídos nos debates em grupos. Os saberes iniciais sobre Segurança Alimentar e Nutricional não foram descartados, visto que agregam o conceito final. Este movimento dos sujeitos e dos sentidos faz parte do funcionamento da linguagem, que se assenta na tensão entre os processos parafrásticos e os polissêmicos. Nos processos parafrásticos há sempre algo que se mantém -a estabilização, e nos polissêmicos, há deslocamento- ruptura de processos de significação (Orlandi, 2009).

4. CONCLUSÕES

Utilizar a Análise de Discurso, nestes episódios, como referencial teórico e metodológico, para compreender como os sentidos sobre Segurança Alimentar e Nutricional foram produzidos, possibilitou alguns pontos de reflexão sobre o processo educativo, voltado, não somente, para os espaços não formais de educação.

Dentre estes pontos, destacamos a importância do entendimento de que o discurso não se faz por meio de transmissão de informação, como se o que é dito pelo locutor é automaticamente compreensível pelo ouvinte. Entre o dizer e o ouvir pode haver deslocamento de sentidos, que faz com que o que é dito seja compreendido de outra maneira, possibilitando compreensões distintas. As interpretações, tanto de quem diz, como de quem ouve, são baseadas no conhecimento histórico, social e cultural, bem como nas experiências vivenciadas por cada um dos interlocutores. Respeitar essa memória discursiva, incitando as participantes a se posicionarem frente aos assuntos debatidos, favorece o processo de conscientização e, possibilita, a essas mulheres, a superação de situações-limite provenientes da realidade, a que estão imersas, e que antes não eram percebidas.

Outro ponto diz respeito à posição que o sujeito ocupa no discurso. A posição do educador é vista como mais valorosa do que a do educando. Romper com essa hierarquia, inscrita socialmente, permitindo trocas de posição, possibilita aproximações entre os interlocutores, de modo a evitar que o silenciamento, por parte das pessoas que estão na condição de educandas, impeça que os sentidos sejam construídos. Alerta-se para o fato de que esta censura, instituída historicamente, exige de ambas as partes um esforço muitas vezes difícil de ser superado. É necessário ao educador se assumir como educando e projetar, no educando, a função de educador. Dessa forma, com a valorização do saber do outro e, com humildade, é possível firmar vínculos e gerar confiança, fortalecendo a relação dialógica e a co-participação na construção de novos sentidos e saberes.

Ainda, vale ressaltar a tensão entre paráfrase e polissemia, indispensáveis em um processo educativo, visto que fundamentam o funcionamento da linguagem e a produção de sentidos. É por meio da polissemia que se pode romper com a estabilização, construindo um novo sentido, que não havia sido experimentado. Esse jogo entre paráfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, permite que os sujeitos signifiquem e se signifiquem, conferindo novos sentidos aos contextos em que estão inseridos, por meio da troca de informações e saberes. Por este motivo, a relação dialógica é importante, visto que é por meio dela que as situações-limite são superadas, sendo possível, parafraseando Paulo Freire, re-ad-mirar a ad-miração anterior.

Por fim, no processo educativo, é fundamental permitir que o outro seja protagonista de sua própria história, formando-o para atuar como transformador de sua realidade, da realidade de sua família e da sociedade. Desta maneira, teremos sujeitos com uma postura crítica, participativos, atuantes como cidadãos conscientes dos seus deveres e direitos e capazes de tomar decisões que favoreçam o convívio e a sustentabilidade da sociedade.

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[1] Às participantes lhes foram dados nomes fictícios com o intuito de garantir seu anonimato.

[2] Extraído do projeto de Extensão: “Colocando a mão na massa: garantindo um futuro mais digno”, registrado na PROEC sob o número 524/08.

 

 

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