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RIEJS
UM ENCONTRO ENTRE PAULO FREIRE E A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: MARIA DO CARMO DOMITE INSTIGADA POR RÉGIS FORNER

Uma visão da educadora Maria do Carmo Domite sobre a influência de Paulo Freire na Educação Matemática... instigada pelo pesquisador Régis Forner.

Régis: Professora, atualmente sua área de pesquisa é a Etnomatemática. Nesses mais de 20 anos como pesquisadora, sabemos que a senhora iniciou seu trabalho em Educação Matemática, estudando a teoria de Piaget junto a educadores matemáticos orientados pelo professor Lino de Macedo do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e Resolução de Problemas no auge desta, na Universidade da Georgia, durante seu mestrado. Percebemos uma transformação em seu trabalho, em sua tese de doutorado, uma ampliação da sua reflexão sobre a problematização, de uma noção freireana de ordem política para um processo de aprendizagem, no contexto da formulação de problemas e da modelagem matemática como métodos de ensino. Fale mais de sua convivência com o professor Paulo Freire.

M. do Carmo: Na verdade, eu sempre procurei estar por perto das ideias de Freire, ora estudando sua obra, ora ouvindo-o falar. Fiz parte do pessoal que recebeu o professor Paulo Freire no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o TUCA, na sua volta ao Brasil em 1980, após muitos anos no exílio. Foi um momento muito especial em termos políticos, educacional e afetivo.

Régis: Em 1988, a senhora foi aluna dele na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo...

M. do Carmo: Isso. Neste período, em 1988, fui atrás do professor Paulo para ser aluna dele. Como não havia entrado na Universidade de Campinas-UNICAMP, o professor Lafayette de Moraes orientou-me a procurar o professor Joel Martins no programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUCSP para fazer algumas disciplinas. Assim, naquele ano fiz duas disciplinas com o professor Joel Martins e uma disciplina na PUC e outra na UNICAMP com Freire. O lugar no curso do professor Paulo, na PUC, foi daquelas coincidências que vale a pena contar. Ao entrar numa sala, na qual estava se dando a distribuição dos alunos para os cursos de pós-graduação, encontro a professora Ana Maria Saul explicando que havia ainda uma única vaga para a disciplina com Paulo Freire e eu, totalmente desconhecida do grupo, digo de modo ansioso: “eu quero esta vaga!”. A Ana perguntou-me quem eu era e eu disse que, alí estava, por orientação dos professores Joel Martins e Lafayette de Moraes. Ela me deu a vaga e acabei fazendo esta disciplina com o professor Paulo e também neste período, um curso na Universidade de Campinas. Como você sabe, ele estava no quadro das duas universidades.

Régis: Paralelo a isso, no cenário político o Partido dos Trabalhadores-PT com a Luiza Erundina estava prestes a assumir pela primeira vez a prefeitura de São Paulo, o que iria transformar totalmente o ensino público da cidade. Muitas pessoas ainda têm uma ideia errada da forma que foi orientada esta transformação. Por favor, nos esclareça o que foi esse processo.

M. do Carmo: Durante o curso da PUC, a Luiza Erundina ganhou as eleições para prefeita de São Paulo e o professor Paulo, como você sabe, foi convidado para ser seu secretário de educação, cargo este que ele não queria de início. Durante uma aula, neste início, contou-nos que estava se escondendo da futura prefeita, pois não tinha certeza da resposta para exercer o cargo. Luiza e professor Paulo eram grandes amigos, ele a respeitava e a admirava muito. Paulo Freire acabou aceitando o convite e para iniciar tal trabalho convidou um grupo de professores universitários, em especial, dois companheiros, de modo a construir as bases do projeto inicial: dois físicos, o professor Márcio D’Olne Campos, da Universidade de Campinas-UNICAMP, e o professor Luiz Carlos Menezes, da Física da USP. Certa vez, Paulo Freire comentou algo como ter a seu lado dois educadores do jeito que sempre quis -um marxista e outro antropólogo. Dentro do grupo que foi se formando havia pessoas de quase todas as áreas e alguns petistas envolvidos com educação. A Marineusa Gazetta e eu fomos encaminhadas pelo Márcio Campos para a área de matemática. O professor Menezes convidou a Marta Pernambuco, que estava na Universidade Federal de Natal, para assumir tal frente, pois dizia Menezes, preciso de especial ajuda para pensar o ensino fundamental; daí, o professor Menezes trouxe também o professor Demetrius Delizoicov, também físico, que com a professora Martha encaminharam a área de Ciências e, de algum modo, a liderança do projeto como um todo.

Régis: O chamado Movimento de Reorientação Curricular?

M. do Carmo: Sim. O trabalho elaborado pelo grupo foi denominado “Interdisciplinaridade via Tema Gerador” e foi desenvolvido dentro de um projeto maior, com a intenção de ser especialmente democrático chamado “Movimento de Reorientação Curricular”, proposto por este grupo aos professores e professoras desta rede municipal, entre os anos de 1989 a 1992. O movimento teve como pressupostos básicos as ideias freireanas, dado que privilegiava como levar em conta o contexto social do aluno e o seu conhecimento prévio no processo de aprendizagem pela escola. Era esperado que o caminho do ensinar e do aprender fosse mais ou menos por etapas como: partir de um tema eleito pela comunidade escolar e/ou grupo sala de aula –por isso, em geral, fora do terreno de uma disciplina propriamente escolar–; problematizar tal tema junto aos alunos, levando-os a formular questões e, a partir das questões formuladas, desenvolver os conhecimentos dito escolares. Falo destas pressuposições com tanto entusiasmo porque estes passos eram intensamente desejados pelo grupo de coordenação –que nem sempre foram conseguidos-, mas também modos de direção e desejos que estavam no centro do meu trabalho de tese de doutoramento, que foi finalizado em 1993, ano seguinte do final desta gestão.

Régis: Sem dúvida isso não foi aceito por todos do grupo.

M. do Carmo: É verdade, houve acordos e desacordos. A professora Marineuza não se entendeu com o grupo, retirando-se, Uma das razões da sua saída esteve diretamente ligada à maneira de tratar a eleição do tema gerador. A maioria dos coordenadores por área do conhecimento queria eleger o tema gerado pela e para a escola e nós, a Marineuza e eu, queríamos que isto se desse no grupo sala de aula. Ela saiu do projeto logo no início e eu permaneci, mesmo não aceitando tal ideia durante os primeiros dois anos. Hoje eu compreendo que um projeto, encaminhado como proposta de reorientação curricular para um grupo/rede municipal –ainda que com a liberdade das escolas aceitá-lo ou não como encaminhado– precisaria ser, de algum modo, desenvolvido em termos da escola como um todo, pois o ponto de partida para a interdisciplinaridade que deveria ser administrada pelos professores, junto aos educandos, exigia que a mecânica de operacionalização do projeto tivesse participação da escola, e aí um tema mais restrito a uma sala de aula não alcançaria um projeto de escola. Este foi um grande impasse, pois não acreditávamos também que um tema gerado de modo amplo –pela comunidade escola– não estaria mobilizando as crianças de uma sala de aula. Talvez sub-temas tirados em sala de aula, mas um grande tema por escola, talvez...

Régis: Esse movimento delegava, ou seja, além de ser inovador, buscava uma grande interação entre todos os envolvidos em todas as escalas das escolas municipais.

M. do Carmo: Sem dúvida, o professor Freire foi especialmente descentralizador neste movimento. Criou 10 núcleos –Núcleo de Ação Educativa, os 10 NAEs, no lugar das 5 Delegacias de Ensino já existentes. Cada núcleo de ensino estava ligado a mais ou menos 40 escolas, com uma equipe multidisciplinar de coordenadores em cada NAE. O projeto de interdisciplinaridade começou a ser encaminhado e, dessa maneira, eu vivi dois anos perto do professor Paulo. O projeto só seria desenvolvido pela escola se esta o aceitasse após uma apresentação aos professores e a coordenação/direção, ao mesmo tempo os projetos próprios da escola deveriam ser valorizados. E, vale aqui comentar que apesar de tal atitude, por parte daqueles que estavam na coordenação geral, a proposta não foi de todo assim percebida pelos professores da rede municipal. Temos, hoje, se assim posso dizer, três tipos de imagens na lembrança dos professores e professoras da prefeitura sobre este movimento: aqueles que consideram tal trabalho como o maior impulso no sentido da libertação/transformação do educador da prefeitura, outros que sentiram que foram forçados a trabalhar por meio deste caminho e certamente não o fizeram, de algum modo sabotaram-no, e, outros, que nada sabem sobre ele, pois ainda não atuavam como professores e professoras desta rede e não têm colegas que tenham conseguido liderar equipes neste sentido.

Régis: Mesmo com essa resistência por parte de alguns, acredito que essa época, do ponto de vista dos que abraçaram o movimento foi um momento que marcou pela qualidade das discussões que foram geradas por ele.

M. do Carmo: É isto especialmente que se deu -estes quatro anos foram incrivelmente ricos para a formação dos professores e dos próprios formadores. Cada equipe de cada Núcleo de Ação Educativa-NAE se reunia semanalmente com os coordenadores de área. O professor Paulo, sempre a par das dificuldades e dos bons resultados, participou de várias reuniões no órgão central, a Diretoria de Orientação Técnica-DOT, onde todos os coordenadores, de todas as áreas apresentavam o que já estava sendo delineado como um trabalho escolar pela via da interdisciplinaridade. Guardo fortemente na minha lembrança a expressão do professor Paulo ouvindo a apresentação de duas professoras de uma escola no pé de uma favela, numa região periférica do sul da cidade de São Paulo, Campo Limpo, cujo tema gerador era algo como lazer. Contaram, então, as professoras que os alunos decidiram, em sala de aula, entrevistar os moradores da favela sobre coisas relacionadas a lazer e em especial sobre o papel da televisão como um tipo de lazer. O professor Paulo, olhando para as professoras, escutando-as com toda atenção, sorria e balançava a cabeça com uma expressão de grande entusiasmo. O momento mais forte deste trabalho foi, do meu ponto de vista, quando as professoras contaram que os alunos, alunas e elas próprias que esperavam encontrar crianças, ou até mães, na frente da televisão durante o dia, encontraram vários pais, pais desempregados. O professor Paulo se emocionou com esse destaque dado pelas professoras– na verdade, ouviu e participou muito emocionado da apresentação como um todo, desde a problematização frente ao tema até o registro de todo o processo. Freire sempre fez muito bem o que eu tenho como meta, como sonho conseguir fazer: escutava... escutava o “outro”, como este “outro” faz e conta o que faz e sabe– e, se assim posso dizer, teorizou sobre esta escuta.Vale aqui comentar que do ponto de vista das relações matemáticas apresentadas pelos alunos e alunas neste trabalho, lembro que o grupo construiu gráficos de setor para comunicar os canais de TV mais assistidos pelos moradores do local e apresentaram um mapa, em escala, do local.

Régis: Grandes nomes também foram convidados, entre eles Ubiratan D´Ambrosio e Michael Apple para essa interação com os coordenadores.

M. do Carmo: Os coordenadores dos NAEs e aqueles que estavam no órgão central foram especialmente favorecidos em termos de estudo e, se assim posso dizer, dos fundamentos para a proposta pedagógica almejada, pois mensalmente eram convidados a ouvir um notável estudioso, como Michael Apple, Antonio Faundez, Lino de Macedo, Ives de la Tayle, Martha Kohl, Ubiratan D’Ambrosio entre outros. Os trabalhos foram caminhando. Discutíamos, sempre, como é que as coisas estavam acontecendo, com a preocupação das escolas apresentarem seus trabalhos uma para as outras. Três grandes congressos foram realizados.

Régis: Considerando que esse movimento tinha São Paulo como cenário, vários outros temas devem ter sido eleitos...

M. do Carmo: Sim foram eleitos temas variados como lazer, violência, enchente, lixo, contabilidade da escola entre outros e os grupos de professores, coordenadores pedagógicos, diretores, pais e alunos - em cada escola - foram amadurecendo a construção de caminhos para levar a um bom termo cada processo enquanto aprendizagem de um conteúdo escolar. Depois da saída de Freire, da Secretaria após dois anos, continuamos mais dois anos com o professor Mário Sergio Cortella como secretário. Nessa época, 1988 e 89, eu estava bastante preocupada com os trabalhos do meu terceiro ano de doutorado em andamento pela Unicamp, mas produzindo de modo muito pouco organizado a realização da tese dado que o tempo à dedicação ao projeto da prefeitura de São Paulo era enorme. No entanto, eu aproveitei para realizar a pesquisa de campo, e com isso vivenciar dentro da sala de aula as etapas a ser percorridas pela proposta de reorientação curricular via tema gerador, uma vez que minha tese tinha muito a ver com essa ideia. Atuei como pesquisadora, especialmente participativa da relação de aprendizagem e da formação da professora de uma 6ª série, numa escola do bairro Aeroporto, da região sul de São Paulo. Minha família comenta de modo irônico que eu só concluí o doutorado porque foi eleito um outro prefeito em 1992, ou seja, se outro prefeito ou secretario da educação, do Partido dos Trabalhadores, continuasse alimentando tal proposta, eu não teria realizado a tese. E certamente este não foi um movimento de continuidade alimentado pelo grupo do novo prefeito eleito.

Régis: A prefeitura de São Paulo retornou ao PT com a eleição da Prefeita Marta Suplicy, oito anos depois. Foi dado continuidade a esse projeto¬?

M. do Carmo: Como você pode imaginar Régis, o professor Paulo é uma figura muito respeitada pelos petistas, pelo grande homem que foi e como um dos intelectuais fundadores do Partido. Mas uma coisa é você investir de fato em um caminho, outra é achar que as pessoas militantes ou não que trabalham fora da educação podem conseguir bons resultados só porque são críticos e engajados. Quando a Marta Suplicy se tornou prefeita de São Paulo, eu fui atrás de um dos secretários de Educação. Na verdade, não falei diretamente com o ele, somente enviei-lhe uma mensagem com a ideia de começar o trabalho ouvindo as escolas, com a pergunta: Escola, quem é você? Dar voz às escolas, saber quem eram elas, quem fazia parte delas, professores e professoras mais ou menos autônomos e entusiasmados nesta ou naquela área de estudo; se havia remanescentes da gestão Paulo Freire, já que oito anos havia se passado e, se algumas delas vinham desenvolvendo projetos próprios, entre outras coisas. A ideia era seguir a orientação da teoria de Freire, que toma sempre como ponto de partida a realidade, o conhecimento do outro indivíduo ou grupo, reconhecendo que estes são diferentes porque as pessoas são diferentes, as histórias são diferentes. De fato, cada escola é bem diferente das demais e tem conhecimento acumulado enquanto núcleo. Eu percebo isso cada vez mais. Hoje estou trabalhando Centro de Educação Unificado-CEU da Prefeitura de São Paulo, região de Perus e é nítida a questão da diversidade sócio-político-econômica em relação aos bairros mais centrais como Vila Mariana ou Pinheiros. O que eu quero dizer é que o processo de ensinar não deve começar das intenções, dos administradores para a população, mas de forma inversa, o que o professor Paulo sempre encaminhou muito bem.

Régis: Sua convivência com Paulo Freire foi além da relação aluna-professora ou professora-secretário, como foi essa convivência com esse entusiasta educador?

M. do Carmo: Estive com ele, algumas vezes, em sua casa onde ele comumente recebia para reuniões de trabalho. Uma das vezes, me lembro para discutir em especial, sobre a problemática da dinâmica dialógica e da escuta, minha busca em termos de pesquisa, ação pedagógica e formação de professores, naquele momento, da rede municipal de São Paulo. Estive também com ele em situações relacionadas a outros educadores da educação matemática. A última vez em que vi o professor Paulo foi quando eu fui lhe pedir uma carta de apresentação para estudos na Dinamarca, junto ao professor Ole Skovsmose e mostrar-lhe, a pedido do Ole, seu livro Towards a philosophy of critical mathematics education, da Kluwer. Neste encontro, o Professor Paulo folheou e folheou o livro enquanto eu explicava um pouco sobre as ideias do Ole, relatando sobre as relações sociais da educação matemática e a etnomatemática, como eu as via. Contei também a ele, me lembro, sobre o tamanho do seu prestígio na Dinamarca, segundo Skovsmose. Freire destacou, entusiasmado, o valor de um educador como Ole estar ligado à educação matemática. Ele não quis ficar com o livro dizendo que acreditava que um texto como este teria muito mais utilidade para alguém da educação matemática, em especial, pelo fato do foco estar na sociologia e na política. O professor Paulo pediu que eu começasse a escrever a carta de recomendação e ele a completaria. Mas, ele não completou, pois faleceu algumas semanas depois desse encontro. Até hoje tenho a carta no meu computador. Foi uma tristeza, um enorme vazio para a educação e para a política brasileira. Um enorme buraco no coração de muitos. Eu cheguei mesmo a me esquecer do desejo de ir para a Dinamarca.

Régis: Dizem que ele estava um tanto quanto confuso meses antes de sua morte.

M. do Carmo: Algumas pessoas, alguns educadores têm o prazer em afirmar isso, que ele falava demasiado sobre sua família ou sobre histórias de sua vida. Eu nego totalmente tal interpretação e acho que estas pessoas encontraram um modo de atacá-lo como sempre quiseram fazer, agredindo-o de modo indireto no que diz respeito ao seu modo de se relacionar com o conhecimento, de teorizar sobre a construção de conhecimento. Eu considero sim, a partir do que ouvi do professor Paulo e li sobre ele, que ele sempre se comportou deste modo, procurando contextualizar sócio-culturalmente a discussão/situação que se propunha compreender com seus ouvintes e/ou educandos. Por exemplo, falava da escuta aos camponeses do Chile e logo em seguida da sua primeira mulher, não só para recuperar as lembranças de momentos difíceis ou preciosos que ele viveu com ela no exílio, mas para contextualizar histórico-economicamente o seu modo de viver entre os camponeses, na zona rural do Chile, naquela época. Falava da casa onde morou com a Elza e os cinco filhos, uma casa simples onde havia somente uma mesa de madeira com bancos, um móvel para colocar poucas louças, um fogão a lenha e camas muito simples. Contava que a família ficava, após o jantar, em volta da mesa conversando sob luz de vela, só indo dormir quando a vela apagava. Outro exemplo da sua atenção à contextualiazação, e não um simples comentário (demasiado) sobre sua vida pessoal, encontra-se na maneira como ele sempre colocou a presença da sua primeira mulher na construção do seu método de alfabetização. Ele enfatizava sempre a facilidade de sua primeira mulher Elza em alfabetizar e sobre o quanto eles conversavam, desde o início dos dois como educadores, sobre o papel político e social dos processos de alfabetização.

Régis: Após a saída do professor Paulo Freire da Secretária da Educação, o professor Arthur Powell veio a São Paulo encontrar com o mestre, como foi esse encontro entre os dois?

M. do Carmo: Quando o Arthur Powell veio a São Paulo, nós fomos juntos a casa do professor Paulo. O Arthur veio para o Brasil como propósito de ficar vários meses, em 1990 ou 1991. Nesta ocasião o professor Ubiratan pediu que eu o colocasse em contato com o grupo da prefeitura e outros grupos envolvidos com educação e, até mesmo, arrumasse um apartamento para ele. Eu dei conta de algumas dessas tarefas com muito prazer, pois a companhia do Arthur era muito especial - eu aprendi e aprendo muito com ele sobre muitas coisas. Nessa época, Paulo Freire já havia saído da Prefeitura, deixando Mario Sergio como seu sucessor. Quando o Arthur estava retornando para os Estados Unidos o Professor Ubiratan insistiu que eu o levasse até o professor Paulo. Assim, eu acabei ligando para o professor Paulo e a nossa visita foi um grande momento para mim e para o Arthur. Lembro-me do Arthur muito emocionado ao ver-se diante de Paulo Freire; sentados frente a ele, ouvimos histórias sobre o exílio e sobre o seu modo de ser como escritor. Contou-nos que a partir da sua primeira ida aos Estados Unidos acabou estabelecendo uma relação muito produtiva com vários educadores, filósofos e sociólogos americanos, retornando lá várias vezes –disse ainda que foram das melhores discussões/diálogos que conseguiu estabelecer com educadores e sociólogos da educação durante a sua vida. Vale aqui um parêntese: como muitos de nós sabemos Freire negou-se a pisar o solo dos Estados Unidos por muitos anos– considerando-se um anti-americano - até o dia em que sua esposa Elza o provocou dizendo que a atitude de não conhecer de perto o outro diferente não combinava com o que ele vinha propondo/discutindo, até então, como educador. Paulo Freire se aproximou estreitamente do pessoal da chamada Teoria Crítica, como Michael Apple, Carlos Alberto Torres, Carnoy, que estavam na Califórnia. Num determinado momento da visita, eu criei coragem e fiz uma brincadeira com o professor Paulo, dizendo que ele falava tanto em diálogo, em ouvir o outro e que ele tinha dado pouca oportunidade para o Arthur falar. Paulo Freire riu e disse que, de fato, ele falava muito. Disse rindo que se pudesse voltar, numa outra vida, ele escolheria ser psiquiatra ou violonista clássico, como seu filho. Se fosse psiquiatra, as sessões seriam no máximo duas, pois ele iria falar, falar, falar tudo o que não estava bem no outro e o outro, apenas ouviria. Do que me lembro, o Arthur Powell acabou falando muito pouco sobre seu trabalho e o quanto ele vinha decodificando a obra de Freire nos Estados Unidos – mas creio que aquele foi um grande momento para o Arthur, estar com o mestre Paulo Freire num encontro especialmente informal. Estas imagens estão muito frescas na minha memória, inclusive a do seu velório. Eu me lembro sempre do professor Paulo como alguém muito firme, enérgico e especialmente carinhoso –lembro-me do modo como ele tocava no nosso braço, colocava a mão sobre o braço ou a mão do outro com quem falava, olhando diretamente nos olhos.

Régis: o professor Arthur é um dos educadores matemáticos americanos, hoje cada vez mais ligados aos educadores brasileiros, que se mostrou profundamente identificado com a visão freiriana, não é?

M. do Carmo: Sim, o Arthur Powell, na Rutgers University, e a Marilyn Frankenstein na Universidade de Massachussets refletiram e produziram juntos, nos anos 90, discussões sobre a educação matemática e/ou etnomatemática, tomando como referência o pensamento de Paulo Freire. Juntos escreveram nesta perspectiva “Towards liberatory mathematics: Paulo Freire’s epistemology and ethnomathematics” em 1994, publicado no livro Politics of liberation (paths from Freire) e “Paulo Freire’s Contribution to an Epistemology of Ethnomathematics” em 2002, publicado nos Anais do International Congress on Ethnomathematics-ICEm (Ouro Preto-MG) e Marylin Frankstein escreveu “Educaçao matemática crítica: uma aplicação da epistemologia de Paulo Freire”, publicado no livro Educação Matemática organizado por Maria Aparecida Bicudo.

Régis: Outro encontro também presenciado pela senhora foi memorável e único, acredito ter sido uma grande honra. Conte, por favor, como foi o encontro com os professores Paulo Freire, Jeremy Kilpatrick e Ubiratan D´Ambrosio e o trabalho que foi gerado desse encontro.

M. do Carmo: Paulo Freire havia sido convidado para uma palestra no 8th International Congress of Mathematics Education-ICME 8 a ser realizado na Espanha em 1996, e não havia respondido até a vinda do professor Jeremy Kilpatrick ao Brasil (meados de 1995), convidado pelo professor Dario e por mim para dar um curso na UNICAMP, entre outras atividades. Daí, o professor Kilpatrick pensou na possibilidade de conversarmos com o professor Paulo e ter certeza da sua resposta, já que o evento estava preparando o último texto de divulgação. Fomos então até a casa de Paulo Freire (reescrever). Ao entrarmos na casa do professor Paulo, ele estava no telefone falando com alguém dos Estados Unidos. O professor Paulo estava tentando explicar porque não podia aceitar uma palestra em determinado local. Daí, quando ele percebeu que o Kilpatrick tinha chegado, tampou o bocal do telefone e pediu que ele falasse para a pessoa que estava na linha que ele não tinha condições de ir dar uma palestra no tal local, o Teachers College na Columbus University. Quando o Kilpatrick pegou o telefone, ele disse sorrindo Hello Fulana (eu não me lembro o nome agora) como está? Quanto tempo não a vejo... e assim por diante, entre risos e palavras de cunho coloquial. O professor Kilpatrick tinha trabalhado há vários anos atrás, antes de ir para a Universidade da Geórgia, neste famoso centro de formação e a secretária era a mesma daquele tempo. Este momento inicial foi um aquecimento curioso e prazeroso para o encontro, em especial para o professor Paulo que pode resolver mais facilmente seu problema, com a explicação dada por alguém americano e familiar a insistente secretária daquele Teachers College. Quanto ao convite para a palestra de plenária no ICME, o professor disse que lembrava do convite, mas estando um pouco doente na época e muito atarefado não respondeu o FAX, considerando assim que não tinha aceitado tal chamado. Diante dessa recusa e da expectativa do comitê do congresso que já havia divulgado o nome de Freire no programa preliminar, resolvemos produzir um vídeo com Freire e D´Ambrosio para ser utilizado na abertura do ICME. Fomos imediatamente para a casa do Ubiratan, pois o Kilpatrick tinha somente aquela última tarde no Brasil. O professor Ubiratan e o professor Kilpatrick, companheiros antigos da Educação Matemática e bons amigos decidiram fácil, e de modo entusiasmado, o projeto do vídeo. Quero aqui lembrar que no momento em que decidimos pelo vídeo, ainda na frente do professor Paulo, ele disse olhando na minha direção algo como: “nós três estaríamos dialogando” e eu disse: “não somente o senhor e o professor Ubiratan”. Daí, Freire e Kilpatrick responderam quase juntos e firmemente: “Sem você não faremos este vídeo”. Eu sempre entendi aquela posição de ambos como um agradecimento pelo meu esforço de tentar resolver o problema da ausência de Freire no ICME, apesar de que eles tentaram mostrar a importância de eu estar neste diálogo, até mesmo por representar alguém mais perto dos professores do ensino fundamental e médio. Assim passei a fazer parte do vídeo e desde aquele momento tomei cuidado para não usar demasiado aquele espaço tão rico, tão precioso para a história da educação matemática. Não se tratava de um simples registro de pontos de vista de dois educadores. Eram dois seres humanos que apontaram na direção de novos paradigmas, um deles de mesmo teor que pode ser explicitado como... a impossibilidade de alguém se desenvolver intelectual e emocionalmente isolado do seu contexto sócio-cultural.

Régis: E como é que se deu esta filmagem?

M. do Carmo: Para realizar o vídeo, por sugestão do professor Kilpatrick, fui imediatamente atrás do meu filho, Paulo de Tarso, que trabalhava na época como assistente de câmera, que aceitou o desafio. Um desafio, eu considero, dado o curto espaço de tempo para a gravação e falta absoluta de dinheiro, em especial, porque Paulo de Tarso colocou como condição fazer a captação de imagem em formado Beta-Cam – muito mais onerosa que o tipo VHS. Alguns dias depois o professor Kilpatrick enviou uma mensagem informando ter conseguido patrocínio da Casio, possibilitando efetivamente a realização do vídeo. Fico emocionada ao lembrar da tarde em que a gravação foi feita. Ubiratan e eu fomos para casa do professor Paulo esperar Paulo de Tarso e um amigo, que atrasaram por mais de uma hora, pois ficaram presos no trânsito excessivamente intenso da Avenida Paulista, dada as enchentes na cidade de São Paulo, naquela época. O professor Paulo, com uma consulta marcada com um acumpulturista, dizia um pouco aflito que não poderia adiá-la. Ele e o Ubiratan começaram a conversar sobre vários assuntos, mas não exatamente sobre o conteúdo do vídeo, e os profissionais da gravação não chegavam. Ainda bem que os protagonistas do filme eram dois grandes palestristas, dois gênios, porque quando eles chegaram, fizeram uma preparação de apenas dez minutos e gravaram. A gravação não foi editada, o que lá está (Vídeo do Paulo Freire, Ubiratam D’Ambrosio e M. Do Carmo Domite: http://www.youtube.com/watch?v=245kJbsO4tE), que muitos estudiosos da educação matemática já assistiram, é o que foi gravado naquele dia. Daí, minha filha mais nova, Taciana, transcreveu-a no dia seguinte. No outro dia, um amigo nosso e meu filho traduziram para o inglês. O vídeo não foi apresentado como uma substituição da palestra de Freire, mas sim diariamente apresentado, em diferentes momentos nos pontos do espaço onde se deu o encontro, em Sevilha, o ICME 8. Este é um bonito exemplo para a sua dissertação, um encontro entre o professor Ubiratan e o professor Paulo que tem como foco a educação matemática.

Régis: Paulo Freire foi especialmente homenageado no Segundo Congresso Internacional de Etnomatemática-ICEm2, em 2002, em Ouro Preto. Como foi este movimento?

M. do Carmo: Houve sim um grande movimento em torno de seu nome neste encontro, em especial uma sessão plenária de Mesa-Redonda que foi composta pelo Arthur Powell, Marilyn Frankstein e por mim dedicada a Paulo Freire. O Grupo de Estudos e Pesquisa em Etnomatemática-GEPEm/FEUSP organizou um texto em equipe, o qual foi distribuído acompanhando a homenagem feita ao Freire. Para ter o texto referente à tal homenagem, é só acessar o site http://paje.fe.usp.br/~etnomat/nos links homenagem e Freire.

Régis: Sua convivência com professor Paulo tem um valor inestimável.

M. do Carmo: Considero, na verdade, que este e outros momentos de encontro com o professor Paulo foram, de algum modo, casuais, para mim que tanto procurava estudar suas ideias, entender sua visão de mundo e de educação, aprender com o seu modo de construir conhecimento sobre educação e formação do educador. Considero casuais porque, ora eu consegui a última vaga no seu curso na PUC, ora a professora que lá estava para distribuir os alunos do curso, a Ana Maria Saul tão querida e admirada por Freire, é a mesma que foi a coordenadora do trabalho da Prefeitura de São Paulo. Mas, na verdade, pensando bem, nada foi por acaso, pois eu estava sempre atrás dos seus passos. Eu vou te contar uma coisa... desde que Paulo Freire voltou para o Brasil, eu ia assisti-lo nos mais diferentes lugares e levava os meus filhos. O filho Paulo de Tarso assistiu duas palestras dele por volta dos 15 anos e ao ser solicitado para um trabalho no curso de sociologia, no primeiro ano da GV, com livre escolha do tema, escolheu fazer uma resenha do livro Pedagogia do Oprimido. A Adriana, minha filha mais velha, assistiu, duas ou três aulas do curso da PUC. Numa das aulas em que o professor Paulo explicava e justificava o uso preconceituoso do gênero masculino para identificar todo e qualquer indivíduo ou profissional ao invés de explicitar cada um –como o homem e a mulher ou o professor e a professora– a Adriana disse no meu ouvido algo como: “Acho que ficaria melhor ainda se ele colocasse o feminino na frente, ele mesmo iria sentir-se ainda mais satisfeito!” No final da aula eu contei a ele o comentário da Adriana e ele disse a ela: “Menina marota! Não vou esquecer do que eu ouvi e de quem ouvi”.

Régis: Qual seria a maior atitude em relação ao ensino deixada pelo Professor Paulo Freire?

M. do Carmo: Considero que uma grande atitude desenvolvida e debatida por Paulo Freire foi a da “escuta”, escutar o outro, que eu reconheço como uma atitude, de algum modo, incorporada pelos antropólogos e muito pouco pelos educadores. Tal atitude, a meu ver, é uma das mais importantes contribuições de Freire para a educação. Mas, assim como se deu com a Antropologia –que teve, no início, um modo bastante elitista de se colocar, no sentido de escutar o outro para dizer que o outro era exótico e/ou estranho, mas não igual.. – pode ser perigoso também para a Educação esta postura. Paulo Freire, como educador e grande intelectual, fazia o movimento que penso que todos nós deveríamos fazer: escutava os camponeses e estudava Gramsci, Kosik, Sócrates, entre outros –ao mesmo tempo em que escutava o povo buscava os fundamentos para construção de conhecimento sobre modos de conhecer e aprender. Poucos fazem isto, com tal profundidade em ambos os pólos. Ele ouviu o homem e a mulher do nordeste, do campo, do Chile, da África e das salas de aula. Freire procurava, como dizia, desenvolver uma percepção das atitudes, perceber na fala das pessoas sobre o que delas escutava, as coisas que as levaram à aquela leitura de mundo, com aqueles termos. Como disse, de um lado a escuta e, do outro lado, o intelectual estudando sobre filosofia, sociologia e etimologia. Paulo Freire não foi um educador que preparava as aulas na sua escrivaninha e trazia-as para os alunos já de modo elaborado, próprio. Ele trabalhava na relação que se formava entre ele e o grupo sala. Sua aula era bastante compartilhada com o grupo de alunos. No curso da PUC, no qual fui sua aluna, ele leu conosco o “Pedagogia do Oprimido” e nos quatro meses do semestre não chegamos a ler nem vinte páginas –várias palavras, não frases nem parágrafos, foram motivo de discussão ou explicação sobre a razão e o papel de ali estar. Sua preocupação era contextualizar com o leitor, de onde o autor olhava, de onde, no caso, o autor Freire falava, o lugar do olhar, o ponto de vista. Isso foi uma coisa que muito me marcou. Tenho até hoje algumas notas deste curso e entre elas está a preciosa interpretação do Freire sobre etnomatemática. Durante uma das aulas, ele pediu que eu falasse sobre a etnomatemática, abrindo uma discussão sobre esse assunto. Após a minha explicação, de modo tímido, algo como: “o estudo das raízes culturais das relações quantitativas e espaciais em contextos culturais diferentes...”, Freire assim se manifestou: “Eu diria que etnomatemática ou ‘etno alguma coisa’ emerge de discursos relativos à interação entre educação, cultura, matemática e política. A praxis da etnomatemática pode ser desenvolvido a partir de investigação da matemática (a etno-matemática) de um grupo cultural. Os propósitos deste processo são construir conhecimento e currículo com as pessoas daquela cultura e enriquecer o conhecimento matemático de outras pessoas (e criar currículo) explorando a etnomatemática de outra cultura”. Esta fala está – até hoje guardada - em minhas notas do curso.

Régis: Paulo Freire dizia que John Dewey era um de seus mestres, como a senhora vê essa influência na vida/obra dele?

M. do Carmo: Paulo Freire considerava como um dos mais significativos ensinamentos, em termos de importância para nossa transformação como educador libertador, a atitude de iniciar a aula pela fala do aluno. Outros ensinamentos, segundo Freire, vindos de Dewey, no que se refere à relação entre escola, conhecimento e ensino, foram: a relação saber-fazer, a relação teoria e prática, o trabalho cooperativo e a relação dialógica. Esta lista ficou na minha memória e eu tento sempre recolocá-la, em especial a atitude de iniciar a aula pela fala do aluno, no discurso sobre formação de professores. Penso que se John Dewey tivesse vivido nos anos 60, ele teria sido um grande companheiro de luta de Paulo Freire. Do meu ponto de vista, o seu objetivo maior, assim como o de Freire, estava no pressuposto de que todo ato de educar é um ato político, pois como todos sabem o objetivo maior de Dewey, como educador, estava na construção da democracia nos Estados Unidos. Freire, por sua vez, marcou com sua afirmação nos anos 80 “sendo um ato político, como toda a educação, é um ato de conhecimento” e, como se sabe, Freire desenvolveu seu método de alfabetização como uma opção para revelar a extrema ligação/coerência entre ação política e prática educativa –fez este movimento com fé no homem e na mulher.

Régis: Quem mais a senhora poderia citar que exercia influência em Paulo Freire?

M. do Carmo: Freire era um grande admirador de Gramsci, Ivan Lllich e Vygotsky, reafirmando sempre a hipótese vygotskiana de que a nossa interação, com o nosso próprio sistema de aprendizagem, não se dá de modo isolado, mas de modo compartilhado com o social e o cultural. Tudo indica, no meu ponto de vista, a ligação de Freire com a perspectiva vigotskiana estava mais na sua convicção e preocupação de que o contexto cultural de todo homem e toda mulher era o ponto de partida e era necessário ouvi-los.

Régis: Sabemos que o diálogo–a relação dialógica– era a grande preocupação e busca de Freire, tanto quando ele se colocava como um pensador da relação opressor-oprimido, como da relação educador-educando, ou ainda da relação formador-professor. Como a senhora poderia ilustrar isso melhor para nós?

M. do Carmo: Como você bem sabe e muitos entenderam, o diálogo está sempre no centro e é por isso que, ele enfatiza –e esta colocação é fortemente destacado por Freire– “numa relação de aprendizagem, os dois lados aprendem”, tanto no que diz respeito à aula ou à conversa/diálogo com o adulto/trabalhador/camponês. Da aula, criar um ambiente no qual o aluno consiga se manifestar e estabelecer um diálogo com o grupo/professor foi sempre a grande busca de Freire, a educação dialógica/libertadora em lugar da educação bancária. Ao estar com o adulto trabalhador, Freire se colocava como alguém que estaria abrindo um diálogo com o grupo sobre um tema –em geral sobre coisas da realidade física e social do grupo– e, da leitura de mundo dos homens e mulheres da comunidade local/sala de aula, ele educador/cidadão poderia, via diálogo, encaminhar com eles/elas uma re-leitura sobre o tema. Sobre o tema os dois lados deveriam se colocar - o camponês e a camponesa ou o homem e a mulher do lugar tinham pontos de vista e questões –o que falar– e o educador e a educadora tinham o que falar. De todo este movimento, cujo foco central tinha como essência o diálogo e o pensar junto com o outro, acho que podemos afirmar que eram dois os grandes objetivos de Paulo Freire no âmbito da educação: construir um espaço para o oprimido fazer suas denúncias e fazer compreender a educação como uma atitude política e não técnica. Na verdade, o fato de tentar interagir com o aluno, procurando compreender como ele compreende, já podem ser vistas, desde há muito tempo, como movimentos da psicologia cognitiva, mas, em geral, como processos neutros, quase limpos de mundo, tensão e preocupação social e política –em especial na educação matemática.

Régis: Então podemos dizer que a senhora conclui que a proposta de Freire em fazer o professor e a professora voltar-se para seus alunos e alunas é fundamentalmente diferente de todas as posições pedagógicas e epistemológicas precedentes.

M. do Carmo: Posso justificar minha afirmação pelo menos por duas atitudes de Freire: primeiro, segundo ele, o papel do professor e da professora no grupo não é de quem procura interagir com o educando para levá-lo a compreender relações sobre conteúdos específicos e muito menos não é o de quem transmite conhecimento, mas o de quem, por meio do diálogo, procura conhecer com os alunos/as –e como ele afirma, ao ensinar algo aos educandos, o professor aprende deles algo também. Segundo, está no fato de situar a ação educativa na cultura do aluno e da aluna. Para ele, como bem dizia, a consideração e o respeito pelos conhecimentos prévios do educando e a cultura que cada um traz dentro de si, são finalidades do professor e da professora que vê a educação sob a ótica libertadora, ou seja, reconhece-a como meio para gerar uma mudança estrutural numa sociedade opressiva. Embora, ele afirmasse que somente por meio da educação não é fácil alcançar tal objetivo e, muito menos somente por meio dela.

E aqui quero salientar a questão de levar em conta o outro educando, como alguém diferente do professor e dos outros alunos, conhecer como ele conhece de modo contextualizado, tentar dialogar com esse conhecimento é a grande busca da etnomatemática enquanto proposta pedagógica. E, hoje, sendo essa uma das minhas preocupações em termos de pesquisa eu posso dizer que já não acredito em algumas coisas como a tal ponte entre o conhecimento primeiro e o conhecimento escolar. Essa ponte não é facilmente construída com os educandos, talvez, porque no contexto sócio-cultural não tenha matemática da nossa Matemática, mas sim conhecimento cultural, numa outra racionalidade, em outros termos. Na verdade, é perigoso dar explicações a partir do conhecimento dentro do terreno da nossa matemática, é perigoso via interpretação/cooperação do professor procurar chegar ao conhecimento matemático escolar. Talvez porque há uma grande dificuldade em negociar no espaço que fica entre o pensamento e a linguagem, o pensamento e os mitos, as crenças, os valores e as tradições. De todo modo, conhecer como o “outro” conhece e tentar dialogar com esse conhecimento é uma grande contribuição da etnomatemática para a nossa atitude como professor.

Régis: O professor Ubiratan é um grande pesquisador do programa de Etnomatemática.

M. do Carmo: Na verdade, o grande movimento encaminhado pelo professor Ubiratan e outros, em termos de aprendizagem, ensino e etnomatemática sugere ao professor e à professora que devem fazer emergir modos de raciocinar, medir, contar e conclusões dos educandos, assim como procurar entender como a cultura pode potencializar as questões de aprendizagem. Neste sentido, com a discussão da etnomatemática, o professor Ubiratan levou-nos como educadores e professores a criar modelos culturais de crença, pensamento e comportamento.

Régis: Como estão estas ideias nos PCNs?

M. do Carmo: Quando se fala que as ideias de Paulo Freire ou de D´Ambrosio estão nos PCNs, eu não as vejo. Que os “Temas Transversais” vêem desse movimento brasileiro freiriano e dambrosiano, não considero, ou pelo menos, existe uma confusão de ideias, até mesmo uma demagogia. Na verdade, há nos PCNs uma grande controvérsia: exaltam concomitantemente a Resolução de Problemas e/ou os Temas Transversais. Se os problemas já estão prontos, para quê os temas? Que aluno pode ficar problematizado ou provocado pelo tema, se ele sabe que tudo está pronto? Para quê? Penso que se a orientação fosse de Freire ou de D´Ambrosio a grande recomendação seria a Formulação de Problemas, um caminho/método que pede a formulação de problemas pelo aluno, a partir de problematizações frente a algo que o motive para tal.

Régis: Professora, para finalizar, o que a senhora considera que seriam influências do Prof. Paulo Freire na educação matemática, isto é, de que modo alguns pesquisadores tem tentado tomá-lo como referência ou conjugar suas ideias/discurso com as ideias de Freire?

M. do Carmo: Na verdade, este movimento não tem sido uma preocupação minha em termos de pesquisa. De modo geral, eu diria que, naturalmente, você vai encontrar em quase todos os trabalhos, que tem como foco central a etnomatemática ou estão em busca deste caminho, uma ou mais referências às ideias de Freire –no entanto, são poucos os educadores matemáticos que tomam-nas como referência ou fundamentos nos seus trabalhos de pesquisa e, talvez, nas suas ações. Talvez, porque são poucos os trabalhos em educação matemática que tomam pressupostos culturais e/ou explicitamente sócio-políticos para discutir a educação matemática. Talvez, pelo fato da intervenção de Saviani, batizada como visão crítico-social dos conteúdos, que foi bem aceita por muitos pesquisadores da educação matemática dos anos 80 e 90 para ajudar a refletir sobre o poder social da educação. Vale aqui um comentário sobre este momento, esta divergência. Como é sabido, Demerval Saviani tinha como meta a revolução, assim como Paulo Freire, e, do seu ponto de vista, quanto mais rápido os grupos minoritários adquirissem os conhecimentos da classe dominante ou próprios da maioria dominante, mais facilmente poderiam adquirir forças para combatê-la. Freire estava convencido de que o caminho era outro para a revolução, a qual também buscava com convicção, ou seja, a força política, pela via da educação era outra: fortalecer o indivíduo no seu contexto, no seu conhecimento próprio, na sua dignidade. Eram posições diferentes que tiveram vários seguidores disputando veementemente opiniões a respeito. Alguns argumentavam, e eu concordo, que na dinâmica de operacionalização da prática pedagógica não cabia o ensinar sócio-criticamente os mesmos conteúdos - não concordávamos que isso pudesse se dar nas séries do ensino fundamental ou nos cursos para adultos camponeses ou da zona urbana. A proposta era que o professor interagisse com o educando a partir do “nóis vai”, como dizia Freire, com ele ou ela chegar ao “nós vamos”– compreendendo porque apreender o “nós vamos” , e não sendo conduzido ou forçado a fazer tal arrumação no primeiro dia de aula... dizendo... Moço! Não está certo falar nóis vai! O certo é nós vamos porque... porque... porque... Na verdade, o que está, hoje, cada vez mais claro para mim, é o fato de que trabalhar os conteúdos de maneira totalmente isolada daquela que foi construída a partir dos costumes, das tradições, do contexto sócio-cultural do aluno e da aluna pode gerar enfraquecimento, cada vez maior, sobre o modo como a escola conjuga valores e poder político-social com a aprendizagem dos conteúdos (das classes dominantes). Essa é também uma das ideias centrais da etnomatemática, você corta as raízes culturais do grupo e ele perde, mais e mais, a força política. De qualquer modo, mesmo olhando numa outra direção, diferentemente da interculturalidade, admiro as ideias de Saviani, uma vez que deram sempre prioridade ao discurso, no âmbito da escola, que buscava a igualdade de oportunidades, igualdade de classes.

Voltando ao Paulo Freire, à Educação Matemática e Etnomatemática, considero importante deixar aqui registrado alguns trabalhos/momentos, que tenho na lembrança, cuja base teórica tem grande sustentação na teoria freireana. A dissertação de mestrado de Silvanio de Andrade intitulada “Ensino-Aprendizagem de Matemática via Resolução, Exploração, Codificação e Descodificação de Problemas e a Multicontextualidade da Sala de Aula”, defendida na UNESP-Rio Claro, no início de 1998, tendo como tema central a Resolução de Problema toma como aporte teórico entre outros a Pedagogia Libertadora de Paulo Freire. A dissertação de mestrado de Benerval Pinheiro Santos, sob o título “A etnomatemática e suas possibilidades pedagógicas, numa tentativa de articulação entre Etnomatemática e sala de aula está especialmente discutida a partir da perspectiva dialógica de Freire. E, deste mesmo pesquisador, sob o título “Paulo Freire e Ubiratan D’Ambrosio: contribuições para a formação do professor de matemática no Brasil”, uma pesquisa de cunho histórico-filosófico-educacional, que tem como objetivo principal discutir as contribuições de Paulo Freire e de Ubiratan D’Ambrosio para a formação do professor de matemática no Brasil.

Pois é, Régis, seu trabalho é precioso tanto pela importância que deu a este desvelamento –a influência de Freire na Educação Matemática– quanto pelo reconhecimento de que tal explicitação junto aos nossos companheiros da Educação Matemática pode gerar conhecimento e mudança de valores.

Régis: Agradeço, professora, o nosso diálogo tendo no centro das atenções o grande mestre Paulo Freire.

M. do Carmo: Eu que agradeço muitíssimo e te vejo, caro amigo Régis realizando um grande trabalho –que teve como ponto de partida o projeto do seu mestrado– enfatizando os marcos estabelecidos por Paulo Freire na Educação Matemática.

REFERÊNCIAS

Andrade, S. (1998). Ensino-aprendizagem de matemática via resolução, exploração, codificação e descodificação de problemas e a multicontextualidade da sala de aula. Dissertação de Mestrado. IGCE, UNESP, Rio Claro.

Frankenstein, M. (2005). Educação Matemática crítica: uma aplicação da epistemologia de Paulo Freire. En M.A. Bicudo (Org.), Educação Matemática (pp. 101-137). São Paulo: Centauro

Frankstein, M. e Powell, A. (1994). Towards liberatory mathematics: Paulo Freire’s epistemology and ethnomathematics. En P. MacLaren y C. Lankshear (Eds.), Politics of liberation (paths from Freire) (pp. 63-74). Londres: Routledge.

Frankenstein, M. e Powell, A. (2002, abril). Paulo Freire’s Contribution to an Epistemology of Ethnomathematics. Comunicación presentada en el Segundo Congresso Internacional de Etnomatemática-ICEm2. Ouro Preto.

Freire, P. (1968). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Ed. Paz e Terra.

Santos, B.P. (2002). A Etnomatemática e suas possibilidades: algumas indicações pautadas numa professora e em seus alunos e alunas de 5a série. Dissertação de Mestrado. FEUSP. São Paulo.

Santos, B.P. (2007). Paulo Freire e Ubiratan D'Ambrosio: contribuições para a formação de professores de matemática no Brasil. Tese de Doutorado. FEUSP. São Paulo.

 

 

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