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O MÉRITO E A MITO DA DEMOCRACIA RACIAL: TÓPICOS DE UMA DISCUSSÃO

INTRODUÇÃO

Não apenas a educação, mas também muitas outras atividades relevantes para a humanidade como o comércio e a política, padecem, desafortunadamente, da impregnação dos princípios sobre os quais se sustentam as dimensões multifacetadas de uma mesma racionalidade capitalista. Com efeito, o modo como orientamos nossa vida cotidiana muito revela a respeito de tal impregnação. Afinal, mesmo as relações mais essenciais para o ser humano ser humano encontram-se contaminadas pelas maneiras de pensar, sentir e agir pertinentes ao capitalismo. O individualismo e a concorrência evidenciam-se, nesse sentido, como as implicações mais execráveis que decorrem de toda influência que recebemos constantemente sob a égide das mesmas leis que operam a lógica de mercado.

Há de se convir, não obstante, que algumas atividades devem ser, com maior cuidado e esforço, preservadas imediatamente da referida impregnação por um ou outro motivo mais específico. Trata-se precisamente do caso da educação. Afinal, à educação, que padece, reconhecidamente, da influência da racionalidade capitalista, associa-se a missão de transformar a realidade. Depreende-se, daí, a necessidade imprescindível de desmistificar as ideologias que governam a realidade que se pretende transformar (Freire, 1982). Logo, a educação que se apresenta como transformadora, emancipadora, não pode padecer, em sua essência, da mesma moléstia que pretende confrontar. Por isso, propomo-nos ao exame de algumas maneiras como os discursos e práticas corroborados pelo capitalismo adquirem forma e são incorporados à educação, governando, silenciosamente, nossas práticas.

Mais especificamente, pretendemos, no decorrer do presente artigo evidenciar a mistificação do processo no qual, ao obscurecer os problemas raciais brasileiros por meio da ideologia do amalgamento de raças, esconderam-se os dilemas do escravo e de seus descendentes. No mesmo sentido, pretendemos também examinar em que medida e com que profundidade a educação mantém-se impregnada do legado da escravidão, sobretudo no que se refere às consequências ao jovem negro e mulato. Evidentemente, o ponto de partida de nossa discussão consiste nas condições sociais e históricas que permitiram tanto o surgimento como o agravamento de nossa problemática no Brasil. Não obstante, a discussão que depreendemos de tais aspectos não é relevante apenas àqueles que educam no país, justamente porque, conforme observaremos adiante, a problemática enunciada decorre de condições que emergem no seio de quaisquer sociedades regidas pelo capitalismo.

Precisamente por esse motivo, independentemente das condições em que nossos leitores educam ou das circunstâncias em que se relacionam com a educação, consideramos importante que se dedique a devida atenção à problemática mencionada, que, a despeito dos delineamentos do caso brasileiro, circunscrevem-no de forma mais ampla e superam-no. Entendemos, ademais, que sua compreensão permite-nos desobscurecer e enfrentar dimensões multifacetadas do capitalismo que nos acometem cotidianamente. Todo educador comprometido com a transformação da realidade deve, portanto, dedicar-se ao estudo que segue a fim de desmistificar ideologias que orientem sua prática educativa. Na verdade, afirma-se o mesmo para todo indivíduo comprometido com a educação, de maneira que a discussão que empreendemos interessa aos educadores, aos políticos e demais lideranças que se dedicam a repensar e transformar suas práticas.

1. O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL

Ao Brasil sempre foi reputada, um tanto ingenuamente, a capacidade de ter amenizado as consequências perniciosas de seu passado escravocrata. Por jamais ter ensejado efetivamente um embate entre grupos étnicos distintos, perpetrou-se a concepção de que o país construíra uma nação mestiça, irmanada e democrática, no que tange às relações raciais. Viajantes europeus e norte-americanos do século XIX, por exemplo, reproduziam máximas como “o preconceito de cor no Brasil não existe”. Alguns deles, como Louis Couty (1881), asseguravam, também, que “os escravos desfrutam de condições mais suaves que nossos assalariados na Europa” (p.9). O processo lento de desagregação do regime escravocrata brasileiro e a constituição de um contingente considerável de negros livres, ademais, contribuía para reiterar a suposição do convívio pacífico entre as raças. Assim construiu-se uma concepção de que as dinâmicas sociais da escravidão no Brasil haviam sido amistosas e suas consequências socialmente positivas.

É importante considerar, no entanto, que a concepção de uma democracia racial brasileira foi forjada muito recentemente. Segundo Lilia Schwarcz (2011), no século XIX, o pensamento científico e político sinalizavam, na verdade, um agudo processo de racialização e segregação na sociedade brasileira, pautados sobretudo nos moldes higienistas e deterministas, segundo os quais concebia-se o caráter danoso da miscigenação racial. Silvio Romero e Nina Rodrigues, a guisa de exemplo, são pensadores que defendiam práticas de exclusão social, “em nome da ciência da época” (p:439). Todavia, Schwarcz observou que, se, em meados da década de 1920 ainda prevaleciam os modelos higienistas, na década de 30, ao Brasil já se atribuía a rubrica de democracia racial. Uma geração de pensadores, contemporânea ao pensamento modernista brasileiro (como Mário de Andrade, Artur Ramos e Gilberto Freyre), inseriu a cultura negra no centro das preocupações que diziam respeito a formação de uma cultura nacional. Tanto que o caráter mistificador da ideologia da mestiçagem como modelo de democracia racial tomara vulto nas décadas de 1940 e 1950. Naquele período pressupunha-se que, tanto no Brasil como na América Latina em geral, as relações raciais e culturais, erigidas sobre as bases da fé católica, tendiam a produzir sociedades miscigenadas, nas quais os conflitos e antagonismos oriundos da colonização eram superados nos campos étnico e cultural. No mesmo período, a ideia de uma superação pacífica de conflitos étnicos surgia, assim, como um alento às nações onde a segregação continuava a ser realidade: os Estados Unidos, com a Lei de Jim Crow; a África do Sul, rumo à institucionalização do apartheid; e os continentes africano e asiático, em processo de descolonização.

A crença ingênua de que o Brasil constituía um idílio racial adquiria tal monta que, na década de 50, a UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization) inicia um conjunto de pesquisas sobre o padrão brasileiro de relações interétnicas. O projeto tinha por perspectiva a análise do processo brasileiro de assimilação e miscigenação a fim de que pudesse fomentar medidas para universalizá-lo. O “Projeto UNESCO”, como era chamado, acompanhava uma série de ações com o propósito de compreender as motivações do racismo e de encontrar medidas possíveis para a sua superação.

Muito embora as expectativas fossem promissoras, as teses levantadas pelos pesquisadores se mostravam avessas ao discurso dominante e revelavam as facetas contraditórias da referida ideologia da democracia racial (para melhor compreensão do debate acerca do projeto UNESCO de estudo das relações raciais no Brasil, ver Maio (1999)). Isso porque, como constataremos adiante, a estratificação racial brasileira esteve o tempo todo obliterada pela estratificação social do regime de classes.

Para compreender as dinâmicas sociais do Brasil contemporâneo, portanto, é preciso retomar o processo histórico de esboroamento da sociedade escravocrata, porque nele estão contidas as condições que ensejaram o processo de transição para a economia capitalista e de inserção dos ex-escravos no sistema de classes, com suas respectivas dificuldades e desafios. Como observaremos, o negro e o mulato foram excluídos do processo de expansão do regime capitalista no Brasil, onde os únicos beneficiados foram os círculos sociais das camadas dominantes e os imigrantes recém-egressos da Europa. A partir da compreensão das relações entre o passado e o presente, é possível compreender como as diferenças de cor associaram-se com privilégios de classe.

2. UMA MISTIFICAÇÃO HISTÓRICA

O processo de abolição da escravidão no Brasil ocorreu lenta e progressivamente. Florestan Fernandes (2007:66), sociólogo brasileiro que dedicou longos anos de estudo ao padrão brasileiro de acomodação racial, constatou que a emancipação do negro no Brasil foi, acima de tudo, uma “revolução social feita pelo branco e para o branco”. Evidentemente, as demandas da abolição correspondiam, em certa medida, aos clamores do negro e aos desejos humanitários da comunidade abolicionista. Não obstante, como Fernandes (1978) constata, tratava-se, acima de tudo, de uma condenação do antigo regime, oriunda dos interesses econômicos, valores sociais e ideais políticos da “raça dominante”.

Após o processo da abolição, não se manifestou da parte das classes dirigentes nenhuma tentativa sequer de socialização dos escravos. Os grandes latifundiários, interessados na rápida recuperação do contingente de mão-de-obra necessário ao restabelecimento da economia, empregaram seu poder político para exigir a implementação de medidas de amparo à crise da lavoura. Tornou-se patente, portanto, que o negro, nas palavras de Fernandes, não passava de um “aríete”, por meio do qual se insuflou a necessidade do processo de abolição para atender precisamente ao desejo dos latifundiários de combater um regime que demonstrava ter se tornado improdutivo e dispendioso.

Como Fernandes (1978) observou, os intelectuais abolicionistas, por excelência, “não precisavam lutar nem pela liberdade, nem pela segurança, nem pela dignidade da pessoa, pois tudo isso possuíam na escala desproporcional dos privilegiados em uma sociedade estamental e de castas” (pp:40-41). Isto é, ao branco estava garantida a priori a posição de homem livre em uma sociedade de estamentos, ao passo que, ao negro se impunha uma condição de casta subalterna. Assim, os núcleos intelectuais dos centros urbanos afligiam-se com os males de uma ordem econômica, jurídica e social que travava o desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Tomando as rédeas do clamor da opinião pública e, acima de tudo, extraindo delas apenas a força para mover seus interesses de classe, a camada dominante, como apontou Fernandes, domesticou as impulsões revolucionárias e valeu-se delas para realizar seus intentos de desenvolvimento econômico.

A abolição, portanto, deixava de ser uma convulsão nacional para tornar-se, acima de tudo, uma medida para solucionar a crise econômica da grande lavoura. Uma vez constatado que o contingente de escravos era insuficiente para garantir o crescimento econômico nacional, orientado pela lavoura do café, deu-se subitamente a sucessão do trabalho cativo pela instituição da ordem contratual. Todavia, como Fernandes constata, “deixou-se ao curso natural das relações humanas a determinação do que isso poderia significar, em situações concretas, como democratização efetiva dos direitos e deveres fundamentais dos indivíduos, garantidos juridicamente” (Fernandes, 1978:43).

O negro, mão-de-obra motriz da economia brasileira, percebeu-se subitamente entregue à própria sorte. Uma vez liberto, os senhores eximiam-se da responsabilidade pelo futuro do antigo escravo, sem que se estabelecesse sequer alguma espécie de indenização ou política pública de incentivo e de inserção na nova organização social e econômica. Constituiu assim, segundo Fernandes (1978), um cenário no qual o liberto tornava-se, abruptamente e sem segurança, responsável pelo seu destino, embora não possuísse bases materiais e morais para inserir-se de maneira construtiva na ordem social competitiva.

Tudo conduziu para que o escravo fosse rapidamente substituído pela mão-de-obra livre, sobretudo imigrante. Octavio Ianni (1998), sociólogo marxista dedicado à questão racial brasileira, constatou que, ao proprietário dos meios de produção, o trabalhador livre, ao contrário do escravo, poderia ser submetido a um sistema diferente de incentivo e controle, sendo assim capaz de gerar maiores rendimentos. O incremento de mão-de-obra estrangeira, portanto, tinha duplo sentido: rápida recuperação do contingente de mão-de-obra e adaptação imediata às necessidades da ordem social competitiva.

Neste contexto, a abolição implicou, necessariamente, na desorganização da vida do negro liberto, que se viu mais uma vez espoliado, e, aos poucos, tomaria consciência de que a liberdade adquirida pouco alterava sua situação heteronômica. Onde a produção mantivesse níveis baixos, os ex-escravos conservavam situação semelhante à da escravidão: seriam reabsorvidos pelo sistema de produção na condição de trabalhadores livres, mas em condições análogas, ou incorporavam-se à economia de subsistência das regiões economicamente estagnadas. Onde a economia florescesse, esses libertos tinham de concorrer pari passu com os brancos nacionais e com os imigrantes que, segundo Fernandes (1978:18), “se constituíam em grande maioria de trabalhadores habituados ao regime de trabalho assalariado e suas implicações econômicas e sociais”. Era irremediável, portanto, que o negro fosse preterido enquanto desfrutasse de uma disparidade ao ser comparado aos brancos, nacionais e estrangeiros.

Nessa circunstância, os negros e os mulatos libertos estavam definitivamente despreparados para uma concorrência direta com os brancos e para a ordem econômica emergente. Assim, as ocupações que desfrutavam antes da chegada do concorrente branco –a saber, a manufatura, o artesanato urbano e o comércio de miudezas e serviços–, foram entregues a estes, de modo que àqueles somente restaram os serviços brutos e mal pagos, impelindo-os por vezes a disputar entre si pelas oportunidades mais degradantes com os “componentes residuais do sistema: com os que não serviam para outra coisa ou com os que estavam começando bem por baixo” (Fernandes, 1978:26).

Todavia, como o autor (1978) constata, o modo como se operaram as mudanças sociais no referido período foi, acima de tudo, maliciosamente desigual: quando se referia à preservação do poder nas mãos das classes dominantes, as transformações se apresentam mínimas; nas zonas essenciais para a expansão da economia urbana, ao contrário, estas apareciam de maneiras mais agudas. Assim, no que tange à alteração da condição social do trabalho produtivo, as mudanças foram tão repentinas, que favoreceram apenas aqueles já adaptados ao trabalho assalariado. O que ocorreu, portanto, foi a associação do imigrante como agente natural do trabalho livre, eliminando qualquer competição com os negros ou mulatos. Não obstante, como bem observa Fernandes (1987:17), “aquela dada situação correspondia aos interesses da lavoura e aos mecanismos normais da ordem vigente, e justamente por isso tal associação tornava-se indispensável”.

O processo de marginalização do contingente negro no regime de classes em formação está, portanto, em profunda consonância com o desenvolvimento do regime capitalista no Brasil. A possibilidade de rápida substituição do cativo pelo assalariado propiciou um quadro no qual o negro era compelido a adaptar-se, com seus próprios meios, a um regime com o qual jamais –ou, no caso dos contingentes de escravos libertos, muito pouco– tivera familiaridade. Por isso, quando lograva a inserção no regime de trabalho assalariado, o negro tendia a aplicar a este os princípios do trabalho cativo, sobretudo quando associava o contrato de trabalho ao direto do patrão sobre a sua pessoa. Era inevitável, por conseguinte, que o negro visse no trabalho assalariado o prolongamento do regime servil, posto que as condições nas quais se inseria no mercado de trabalho pouco diferiam da anterior. Doutro lado, o imigrante, que via no trabalho apenas uma maneira de formar pecúlio e ascender socialmente, cumpria as obrigações do contrato e atendia aos mandos de seus patrões. Enquanto houvesse a possibilidade de substituir o negro por mão-de-obra especializada, não havia motivos que ensejassem um processo de aclimatação do negro ao trabalho assalariado.

Nessa conjuntura, há de se mencionar, também, que os brancos nacionais, assim como os imigrantes, contavam com suportes sociais para suas atividades econômicas que contribuíam para a sua inserção construtiva no regime de classes. É preciso considerar que os brancos nacionais, sobretudo aqueles que pertenciam às classes dominantes, contavam com o apoio familiar para empreender atividades lucrativas e que forneciam algum risco econômico. O imigrante, por sua vez, contava com o apoio institucional dos consulados e do próprio governo, sobretudo quando pretendia obter melhores salários. O negro, todavia, tinha de forjar simultaneamente, como observou Fernandes (1978), sua situação econômica e a organização de sua vida social.

No entanto, a condição heteronômica do negro e do mulato no regime de classes constituía, mesmo para si, situação indesejada e ao mesmo tempo inevitável. Indesejada, porque os desejos do negro e do mulato estavam mais inclinados à assimilação dos valores das classes dominantes do que contra elas. A liberdade ao cativo sempre representou, em última instância, a autonomia sobre si e a independência econômica. Como Fernandes apontou (1978), o ex-escravo estava vinculado axiologicamente aos homens livres e poderosos. De outro lado, inevitável, pois a desorganização do negro tivera origem na impossibilidade deste de abandonar subitamente o legado cultural da escravidão e de absorver, no mesmo instante, os valores culturais da ordem capitalista.

Há de se considerar que nem sempre o imigrante ou o trabalhador branco nacional desfrutaram de melhores condições para o trabalho livre quando concorriam com o negro e o mulato liberto. Ao proceder a uma análise da história dos negros alforriados durante o regime escravista, constatar-se-á que, diversas vezes, a eles couberam ofícios razoavelmente prestigiosos e lucrativos. Isso porque, dentro da sociedade escravocrata brasileira, o trabalho adquirira uma conotação pejorativa e indesejável, inclinando os senhores de escravos a libertarem alguns de seus mancípios para exercer profissões que, se de um lado rejeitavam-nas os brancos, de outro, eram incompatíveis com a alienação da pessoa do escravo. Dessa maneira, o contingente de escravos livres, habituados à liberdade e ao regime assalariado, representava uma parcela não desprezível, e que dispunha de meios de concorrer a cargos elevados com o trabalhador branco. Não obstante, como veremos, este diminuto contingente padeceu, igualmente, dos males da concorrência direta com o trabalhador branco. Vejamos o por quê.

Como apontou Fernandes (2007), durante o período no qual se deu a ordem social escravocrata, tanto o “escravo” quanto o “negro” eram duas entidades paralelas e simultâneas: uma dependia da outra. Com o processo de desagregação do regime mencionado, ao eliminar-se o “escravo”, o “negro” converte-se ao mesmo tempo em resíduo racial. Em consonância com Fernandes, Ianni (1998) observa que o regime escravista foi responsável por criar uma correspondência fenotípica, econômica e jurídica do negro e do mulato com o mancípio. Em seu contexto de origem, a correspondência dos papeis mencionados exercia função fundamental, posto que era responsável por direcionar o comportamento e a identificação dos negros à casta inferior, do mesmo modo que condicionava os brancos a um distanciamento daqueles.

Assim, mesmo o negro livre, identificado economicamente ao branco, tomava consciência de sua suposta inferioridade. E o escravo, por sua vez, era mais eficazmente reprimido e, portanto, correspondia melhor aos seus papeis sociais determinados. A consolidação de correlações fenotípicas entre negro e escravo, somadas a medidas repressivas contra negros e mulatos exercia função fundamental no regime escravocrata: ao delimitar o campo de atuação do negro cativo e do liberto, impondo deveres e peculiares e reduzindo a nulos os seus direitos, docilizavam seu comportamento e lhes destituíam de qualquer impulsão revolucionária. Assim, a desorganização do negro assegurava a perpetuação das relações econômicas e de poder. No entanto, mesmo após o processo de abolição, veremos que certas estruturas do preconceito de raça permanecerão ativas no regime capitalista, oriundas da persistência dos padrões assimétricos de raça no Brasil.

3. O DILEMA RACIAL BRASILEIRO

Como vimos, o escravo é uma categoria social determinada por um complexo de atributos psicossociais e culturais que assumiu funções determinadas no interior da sociedade escravocrata. O ex-escravo, por consequência, é um prolongamento daquele, e por isso carrega consigo esses mesmos papéis. Por isso, uma vez constatada a celeridade com que se operaram as mudanças sociais no contexto brasileiro –sobretudo nas regiões em que ocorreu um rápido e tardio processo de urbanização, como São Paulo–, depreende-se que o antigo agente de trabalho foi incapaz de assumir plenamente o papel de homem livre, porquanto a este estivesse associado o homem branco. Assim, como Ianni (1998:153) aponta, “a cor, como marca racial decisiva, ele a transportará consigo do interior da escravidão, como símbolo desta”. O negro, portanto, convertia-se em pária do processo de modernização.

Como constatamos, é patente que o complexo de comportamentos, valores e atitudes da esfera das relações raciais próprios ao regime escravocrata foram tanto mantidos quanto transferidos para a ordem social competitiva, mesmo que suas premissas fossem incompatíveis com os fundamentos da ordem social vigente. Este processo significou, portanto, que as transformações ocorridas no meio social não foram capazes de reestruturar a posição do negro, muito menos os padrões de relação racial. Segundo Florestan Fernandes (2007:146), dado que a transformação do status do cativo para cidadão não encontrou suportes econômicos, sociais e políticos para se concretizar, a conversão de “escravo” em “cidadão” não passou de uma “operação semântica” que, por sua vez “consolidou, nas regiões de crescimento econômico intenso, a última espoliação sofrida pelo escravo, pelo ingênuo e pelo liberto”. Era certo, portanto, que o negro continuaria em situação semelhante, senão pior, do que aquela na qual se encontrava antes da abolição.

No mesmo sentido, Ianni (1998:208) constatou que, no processo de modernização do Brasil, as modificações da estrutura econômica se operaram mais rapidamente do que as modificações da estrutura social. Justamente por isso, foram transportadas à ordem social competitiva “os ideais de mobilidade, as avaliações de posições e status, as técnicas de socialização etc.”, do mesmo modo que “transferiu-se e preservou também a identificação do negro como membro da camada inferior com o que foi escravo ou é seu descendente”. Os negros e mulatos, ademais, também levaram consigo “os componentes fundamentais do subsistema cultural em que se achavam imersos quando cativos”.

Para compreender as motivações da persistência destes, é preciso considerar que, uma vez lado a lado, o ex-escravo e o cidadão branco –não mais distanciados juridicamente como polos assimétricos, mas igualados na condição de homem livre na pátria livre–, dispõem, como único padrão de avaliação recíproca, daquele elaborado no antigo regime. Entretanto, o branco foi o maior responsável pela reorganização dos dispositivos de distanciamento provindos do regime escravista para a sociedade de classes, sobretudo porque ansiava assegurar o distanciamento de seu universo daquele do ex-cativo. Assim, a distinção racial, não mais fundamentada em bases jurídicas, perpetrou-se por meio da continuidade das desigualdades econômicas, de poder e prestígio, como também por meio das distinções de oriundas de um complexo de ideologias racistas.

Assim, os dispositivos de discriminação e de preconceito de cor operaram de maneira conjunta com a desorganização do negro no âmbito econômico. Do mesmo modo que se processou a monopolização da renda, do poder e do prestígio nas mãos do branco, operavam-se mecanismos de distanciamento e de rejeição ao negro e ao mulato na ordem social competitiva. A tão propalada democracia racial, no âmbito econômico, esteve entregue a processos sociais espontâneos, como se a própria expansão do regime de classes e o crescimento urbano fosse capaz de reparar as desigualdades estruturais. A equiparação do negro ao branco, desse modo, só se tornava possível com um nivelamento por baixo, isto é, quando aquele desfrutasse de condições socioeconômicas semelhantes à do “populacho” branco. Ou, como Munanga (1983) aponta, por meio da luta individual de negros pela subsistência e pela ascensão, que resultou na elevação social de um contingente exíguo da população negra comprometida com a ordem social vigente e conformada a ela.

O preconceito racial, portanto, adquire significação específica no seio da ordem social competitiva. Dado que a população negra manteve as mesmas condições heteronômicas do passado servil, o preconceito servia como um dispositivo de justificação para uma “situação de casta disfarçada” da qual se tornou vítima. É indiscutível que o padrão assimétrico de relação racial se mantivera, em sua maioria, intacto, posto que o contingente negro mantinha-se distanciado da população assalariada em desenvolvimento. O que ocorre, como evidenciamos, é uma transfiguração do padrão assimétrico de relação racial ao se adentrar a ordem social competitiva. Isso porque esta nega a estratificação no plano axiológico, partindo da premissa da igualdade entre os homens. No entanto, no seu âmbito econômico a estratificação adquire pleno significado, uma vez que também dispõe hierarquicamente os indivíduos. Segundo observação pertinente de Ianni (1998:208):

Àqueles que detêm o domínio da sociedade, pois, será mais fácil distribuir os homens segundo a cor, conforme a religião, pela origem nacional ou outro atributo acidental qualquer, antes que dividi-los segundo a posição na estrutura social. Por isso haverá negros, mulatos, italianos, poloneses, judeus, alemães, identificados socialmente como distintos uns dos outros, mesmo quando convivem no mesmo grupo social, em condições de igualdade. (p. 208).

O que ocorreu no caso brasileiro, portanto, foi a continuação do padrão assimétrico de relação racial, que adveio da disposição assimétrica de negros e brancos na sociedade escravocrata, e que estabeleceu as bases para uma redefinição do mesmo no novo sistema econômico-social, agora estratificado em classes sociais. É justamente neste ponto nevrálgico que constatamos a persistência do passado.

Sob essa perspectiva, se descortinam as funções ideológicas da ideia de democracia racial: como Fernandes (2007) constatou, tratava-se de um artifício tanto para não proceder a um enfrentamento dos problemas oriundos do processo abolicionista brasileiro, como também de uma acomodação às desigualdades que se impunham na ordem social competitiva. O pensamento predominante brasileiro era –e, em certa medida, continua sendo– guiado por mistificações tais como “o ‘negro teve a oportunidade de ser livre; se não conseguiu igualar-se ao ‘branco’, o problema era dele não do branco” (Fernandes, 2007:45-46). Isso implicava, destarte, em justificar e mascarar a falta de solidariedade daqueles que desfrutaram de posições privilegiadas na ordem social competitiva.

Portanto, é na inserção do negro na sociedade de classes e no modo como a modernização das relações raciais se operou, como um “fenômeno heterogêneo, descontínuo e unilateral” (Fernandes, 1978:10), que podemos compreender o padrão de democracia racial brasileiro em toda sua complexidade. Segundo o autor (2007:65), a investigação do padrão de acomodação racial brasileiro revela que “existe um abismo entre as ideologias e utopias raciais dominantes no Brasil, construídas no passado por elites brancas e escravistas, e a realidade racial.” Isso porque, como constatamos, o convívio entre negros e brancos na sociedade brasileira não é fruto de um processo de democratização econômica, de prestígio e de poder, mas, acima de tudo, de uma “tolerância convencionalizada” (Fernandes, 2007:192). A democracia racial, portanto, assegura a manutenção do bom-tom entre as relações raciais, mesmo quando, maliciosamente, serve unicamente ao propósito de apaziguar as tensões raciais.

O propósito dessa exposição, portanto, consistiu em um breve levantamento da questão racial no Brasil para compreender de que maneira a própria ideologia da democracia racial surgiu como um dispositivo que garantia a perpetuação do status-quo racial. Como Fernandes observou (2007:118), apesar de estar entrelaçado por influências etnocêntricas, o fator determinante era a própria correspondência entre estratificação racial e ordem capitalista. Em outros termos, é a persistência de um padrão de relações raciais de uma sociedade de castas no interior de uma sociedade de classes.

Como observamos, a ordem capitalista no Brasil absorveu, num processo contínuo e vagaroso, a estrutura social vigente no mundo escravocrata. Isto implicou uma situação na qual o regime de classes preserva as camadas dominantes e as camadas desfavorecidas em posições semelhantes, apenas operando, como apontamos, “operações semânticas”, incapazes de modificarem o quadro geral. A metamorfose do “escravo” em “negro” pouco engendrou alterações estruturais na vida do antigo mancípio. A transfiguração deste apenas significou, de fato, que a situação miserável na qual se encontrava seria, doravante, reputada como produto de sua “falta de aptidão para exercer melhores profissões”, “preguiça”, “falta de caráter”, e não como resultado de um longo processo histórico no qual o negro seria duplamente espoliado: uma vez pela escravidão e outra pela inserção na ordem social competitiva.

Na presente discussão, pretendemos, portanto, evidenciar a incongruência do ideário da democracia racial brasileira ao apontar as contradições inerentes ao nosso modelo de acomodação racial, que constituem, nas palavras de Fernandes, o “dilema racial brasileiro” depreendendo-se da continuidade de estruturas sociais de cunho escravista e colonial, mesmo depois da emancipação nacional. Isso porque, segundo o autor (2007: 291), “a desagregação do sistema colonial apenas se consuma ao nível jurídico político”, ao passo que “a estrutura colonial da economia e da sociedade não se alterou senão superficialmente”, sobretudo para que se garantisse a preservação do poder nas mãos das camadas senhoriais, como também para assegurar a dominação econômica e cultural, de feições coloniais, pela hegemonia estadunidense e europeia. Assim, o liberalismo no Brasil não significou nada além de um dispositivo por meio do qual as classes dirigentes garantiram a dominação das demais classes sociais, que, por sua vez, não dispunham de poder suficiente para alterar estruturalmente o cenário.

A democracia racial na condição de ideologia oficial pouco contribui para a compreensão da realidade concreta brasileira. O referido padrão apenas exerce a função de mascarar formas cruéis de injustiça social em que o privilégio é visto, acima de tudo, como algo natural e democrático. Assim, o que define a democracia racial brasileira seria, na verdade, um “modelo sincrético, não democrático, construído pela pressão política e psicológica exercida pela classe dirigente” e de cunho assimilacionista (Munanga, 2010:446). Além disso, a ideologia oficial, como Fernandes observou, quando obstinadamente reiterada, associada por produzir distorções na percepção da realidade: Ou seja, “o que é mal conhecido e entendido acaba por ajustar-se à representação; em consequência, mesmo as vítimas das representações tendem a admitir que elas contêm ‘algum grau de verdade’, compartilhando da confusão e desorientando-se” (Fernandes, 2007:94).

4. O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NA EDUCAÇÃO: APOLOGIA AO MÉRITO

É possível constatar ressonâncias do referido mito da democracia racial em muitos âmbitos na contemporaneidade. Com efeito, nossas instituições e nossos modos de pensar desvelam-se como genuínos reprodutores dos discursos e ideologias que impregnaram historicamente nossa realidade – como o mito apresentado. A escola e a educação, de modo mais abrangente, não poderiam se manter imunes às influências que receberam e, precisamente por isso, padecem das mistificações perniciosas de uma miríade de ideologias e mitos que, como no caso da democracia racial, obscurecem todo exame sério dos problemas que enfrentamos.

Logo, torna-se imprescindível, como educadores e indivíduos comprometidos com a justiça social, identificar tais ideologias, desconstruir tais mitos, enfrentá-los. Nos termos de Freire (1982), é preciso desmistificar aquilo que nossa realidade nos apresenta. Afinal, se, por um lado, muitas ações educativas parecem impregnadas daquilo que Freire denominou ideologizações, por outro lado, consideramos, também com o educador supracitado, que a educação enseja a oportunidade de que precisamos para a transformação social.

Nesse sentido, muito do que Freire concebeu sobre a militância política do educador crítico permanece relevante. De fato, sua crítica à distância entre o discurso e a prática dos educadores caracteriza-se como ponto de partida fundamental para repensar toda prática que não corresponda ao discurso revolucionário que sustentamos. É necessário compreender que o que ocorre para Freire é, também, a impregnação mistificadora de ideologias lesivas àquela prática que se pretende revolucionária, tornando-a contraditória ao discurso: por esse motivo, Freire (1982:141) declara que nossos “erros metodológicos são, no fundo, de procedência ideológica”.

Há de se convir, é claro, que todo educador crítico encontra-se sujeito a tais erros, mas também, que de sua indiscutível responsabilidade diante dos educandos depreende-se uma necessidade impreterível de desobscurecer a realidade, desmistificá-la. Sob essa perspectiva, a educação, como os seminários de formação política de Paulo Freire (1982:141), “se converte numa oportunidade na qual, ao serem os seus participantes desafiados a superar sua visão ingênua da realidade por outra, crítica e totalizante, vão igualmente clarificando-se ideologicamente”. Assim, do reconhecimento de que os obstáculos à ação político-revolucionária “se encontram na contradição entre a opção revolucionária e o emprego de procedimentos que correspondam à prática da dominação”, depreende-se o comprometimento freireano com a desmitificação da realidade.

Não há dúvidas de que identificar tais ideologias e contribuir para sua desmistificação consiste em um árduo empreendimento de discussão e reflexão que demanda inclusive o exame detido de nossos modos de pensar e sentir. Todavia, quando todo educador ou indivíduo autenticamente comprometido com a justiça social dedica-se à tarefa enunciada por Freire, as possibilidades de transformação avolumam-se. Não se trata, portanto, de embates solitários, mas solidários. Dispomo-nos, com grandes mulheres e grandes homens, nas linhas de frente contra o progresso da racionalidade capitalista que, aplicada às variadas instâncias da vida pública e privada, conduz a humanidade aos mais terríveis desvarios.

Como Bertrand Russell (1957), matemático e filósofo do século XX, tornamo-nos socialistas precisamente porque não desejamos o colapso da civilização que o capitalismo torna mais e mais iminente. Portanto, a despeito de todos os obstáculos que se impõem diante dos educadores e indivíduos críticos, devemos compreender a verdadeira natureza das problemáticas que enfrentamos e desconstruir, assim, suas pretensas naturalidades. Trata-se, com efeito, de tarefa difícil. Afinal, como declarou Russell (1956) certa feita, “o conservadorismo não exige nenhum de tais altos processos mentais. O partidário da mudança radical, ao contrário, deve ter certo grau de imaginação a fim de poder conceber algo diferente do que existe” (p.11).

Doravante, após a assunção de tais princípios, torna-se possível refletir sobre as repercussões do cenário descrito anteriormente na educação. Em outros termos, nosso propósito consiste em refletir sobre como a educação, impregnada pelo referido mito da democracia racial, incorpora-o às ideologias que orientam o cotidiano escolar e corporifica-o nas práticas e nos discursos educacionais. Afinal, se, por um lado, a democracia racial brasileira, como em muitos outros países, é um mito; por outro, não é menos verdade que a educação, de maneira abrangente, pouco ou nada tem feito para transformar tal realidade. Depreende-se desta observação que a educação dispõe de algum instrumento que corrobore a existência do mito ou, pelo menos, obscureça-o.

Trata-se, com efeito, da ideologia do mérito que figura com naturalidade nos discursos e práticas de alunos e professores de diferentes países e escolas. Porém, para que seja possível compreender de que modo articulam-se a ideologia do mérito e o mito da democracia racial, é necessário dedicarmo-nos mais detidamente ao exame de como a educação e, de certa maneira, a própria sociedade, incorporou o conceito de mérito. Consideramos, nesse sentido, relevante compreender as concepções de Freire e Russell acerca da referida incorporação. Afinal, ambos representam educadores críticos que se comprometeram com a transformação social.

Existem, evidentemente, nos discursos apresentados por ambos, consonâncias bastante elucidativas. Destacamos, dentre tais consonâncias, a associação que Russell (1951) constrói entre o surgimento do conceito de mérito e o industrialismo, enquanto Freire (1982) o associa diretamente às origens do capitalismo. Para Russell, não restava dúvida alguma de que o advento do industrialismo alterou a forma da luta pela existência, mas preservou incólume a substância da existência e a da moralidade da época. Dessa maneira, a despeito da constatação de que o bem-estar derivou menos das terras e tornou-se menos hereditário, as lutas se intensificaram: “o industrialismo, enquanto aumentou enormemente o bem-estar dos ricos, tornou mais pobres aqueles que já o eram” (p.156).

Logo, devido à aparente instabilidade das lutas econômicas e de classe, havia necessidade de “justificar” a legitimidade do novo sistema de produção, sobretudo em países fundamentalmente aristocratas e, por esse motivo, inventou-se “uma admiração supersticiosa”, que erigiu a competição “como um tipo de Deus”. Desde então, àqueles que atingiam o sucesso nas competições ulteriores, associou-se outra versão do conceito de mérito aparentemente distinto daquele que caracterizava os membros da aristocracia.

A origem do conceito de mérito para Freire apresenta indiscutível consonância com o que defendia Russell. O educador brasileiro, no entanto, associa a origem do conceito de mérito, que denominava “aptidão”, à transição das esferas do poder econômico da aristocracia à burguesia. Trata-se, afinal, do momento em que “a noção de nascimento nobre, como sinal de realização, foi substituída pela ideologia de que cada um constrói o próprio destino, sem considerar o nascimento” (Freire e Shor, 1986:214). Momento em que a burguesia procurava maneiras de explicar, ainda que muito falaciosamente, aos trabalhadores por que não progrediam sob o capitalismo. Como declara Freire, “inventou-se a ideia de aptidão”. Ambas as teorias complementam-se, portanto, no que se refere à associação que deslindam entre a racionalidade capitalista e a apologia ao mérito.

Freire, na sequência do excerto supracitado, denuncia a ciência, nomeadamente as ciências da cognição, neste caso, pela invenção dos testes que demonstrariam a “aptidão” e observa que “as crianças da classe trabalhadora parecem não demonstrar aptidão”. A aptidão e o mérito, vistos dessa maneira, evidenciam-se como instrumentos empregados pela racionalidade capitalista para justificar seus despautérios. Por isso, Freire e Shor (1986) não hesitam em declarar que, para ambos, tanto a aptidão e o mérito como os testes, avaliações e demais instrumentos em que se sustentam devem ser colocados em suspeição.

Russell também conferiu, à abordagem de nossa problemática, contornos muito importantes ao afirmar que não é possível tecer quaisquer considerações sistemáticas sobre o conceito de mérito. Afinal, a própria apologia ao mérito designara, em séculos anteriores, facetas distintas daquelas em que se sustenta atualmente. Reconhecemos, portanto, a transitoriedade histórica do termo. Ainda assim, Russell (1951) denuncia que o modo como compreendemos a justiça social apresenta-se impregnado da apologia ao mérito: àqueles que mais se dedicam a perseguir seus objetivos, é justo dar mais. É claro que, no substrato de afirmações como essa, desvelam-se as corrupções e distorções que a ideologia do mérito provoca, de maneira que Russell (1951:85) afirma resoluto que “a desigualdade deve ser justificada por seus efeitos úteis, e não apenas por algum conceito abstrato de mérito”. Evidentemente, como o filósofo certamente concordaria, não existem tais “efeitos úteis” fora da lógica de mercado que o capitalismo impõe e, precisamente por isso, o mérito se configura como uma enorme mistificação capitalista.

Toda apologia ao mérito opera, então, no sentido de obscurecer a realidade da competição estimulada pelo capitalismo: à medida que a competição é eleita como um processo justo, uma divindade, para Russell, seus contendores defrontam-se à mistificação latente. Àqueles sujeitos sobrepujados, vencidos, resta somente a resignação com os resultados atingidos: como se concorressem a partir das mesmas condições, o resultado de uma competição revela aquele indivíduo cujo desempenho destacou-se por seu próprio mérito, apenas.

Com efeito, nenhuma competição entre brancos e negros pode, no Brasil e em muitos outros países, fundamentar-se apenas no mérito dos sujeitos contendores. Aliás, ao referirmo-nos ao obscurecimento da realidade engendrado pelas mistificações do capitalismo, a questão é precisamente reconhecer que existem anos de história, como aqueles cuja descrição introduz este artigo, obscurecidos pela ideologia do mérito. É necessário reconhecer e enfrentar, portanto, a diferença história projetada no destino dos escravos e de seus descendentes pelo homem branco. Afinal, se hoje não existem condições equânimes para a competição entre negros e brancos, é precisamente porque, no passado, tais condições não foram semeadas e não podemos ignorar isso em face do mito da democracia racial ou da apologia ao mérito. Não nos referimos, portanto, a um obscurecimento abstruso ou abstrato, mas a um obscurecimento considerável daquilo que, no passado, produziu determinadas condições em que vivemos no presente.

Todo educador crítico conhece, em contrapartida, que a apologia ao mérito enseja, portanto, a perpetração das desigualdades que acometem a humanidade, precisamente porque seu emprego se fundamenta em condições inexistentes de equidade. Assim, as mistificações engendradas pela ideologia do mérito permitem o continuísmo e a reprodução das condições amplamente desiguais com que vivemos. É possível sintetizar uma crítica da seguinte maneira: ao tratar da apologia ao mérito a partir de condições desiguais, é impossível descrever em termos apenas de dedicação e esforço próprios os resultados atingidos. Na verdade, não há como distinguir o que é mérito do que é herança.

Posto isso, torna-se evidente a maneira como o mérito é empregado na educação a fim de reproduzir as condições desiguais da própria sociedade. Mais especificamente, ao tratar do mito da democracia racial, a apologia ao mérito nas escolas consiste, portanto, na corporificação educacional de uma mistificação capitalista. Tal mistificação, incorporada às ideologias que orientam a ação educativa, distorce e corrompe as práticas e os discursos promovidos pela educação, corroborando o sistema de exclusão e marginalização que apresentamos anteriormente.

Para os negros e para os mulatos, desfavorecidos em potencial deste sistema mistificado, a apologia ao mérito serve apenas ao propósito de justificar e, com isso, legitimar perversamente, as condições em que vivem. As avaliações e os demais testes de aptidão, nesse sentido, demonstram apenas aquilo que foram forjados para demonstrar: a incompetência destes indivíduos no que se refere às tentativas de ascensão social que o sistema “oferece”. Precisamente, por isso, Freire (1982:58) recomenda que todos aqueles, que concebem tais grupos como “naturalmente inferiores e incapazes” ou atribuem à inferioridade patente todas as deficiências materiais que caracterizam a vida em uma favela ou periferia, convivam com tais indivíduos. Apenas assim, para o educador brasileiro, tornar-se-ia possível compreender que “se há algo intrinsecamente mau, que deve ser radicalmente transformado e não simplesmente reformado, é o sistema capitalista, incapaz, ele sim, de resolver o problema com seus intentos modernizantes”.

Não há como desvincular, portanto, este trabalho das reconhecidas tentativas do movimento negro de combater as mistificações que apenas contribuem para a manutenção de seu encarceramento para além dos limites daquilo que se considera cultura. É importante observar, inclusive, que, sob a perspectiva do que propõem Petronilha Silva e Luiz Gonçalves (2000:156), ambos intelectuais brasileiros de reconhecida expressividade para o movimento negro, este trabalho se desvela como aquilo que descreveram como a necessária participação “de corpo e alma nesses eventos tão palpitantes de nossos tempos”. Em consonância aos autores supracitados, acreditamos que não nos cabe a omissão ou a neutralidade, mas a assunção declarada de nossa posição frente às pautas reacionárias e conservadoras que todos enfrentamos.

Logo, se retomarmos nosso propósito ao iniciar este tópico, constataremos que a apologia ao mérito é uma ferramenta capitalista, talvez, a mais eficaz, que, dentro das escolas, promove o obscurecimento da realidade latente. Por conseguinte, se existem tão poucas iniciativas no sentido de reconhecer, assumir e enfrentar o mito da democracia racial, sobretudo nas escolas, deve-se compreender que o mérito e a aptidão, nesse caso, mascaram e obstruem tais oportunidades. Precisamente por isso, tornamo-nos incapazes de reconhecer, nos dados expressivos –não apenas da realidade brasileira como, mas de certa maneira em todo o mundo–, a perpetuação da dominação racial do branco sobre o negro.

É fundamental reconhecer, portanto, que essa dominação, que tem início nas escolas a partir dos testes de aptidão e avaliações, estende-se para muitas situações em que concorrem negros e brancos: a procura por empregos, a busca de melhores condições sociais, a aprovação em concursos... O que há de comum em todas essas situações é a conjugação do mito da democracia racial, o estímulo à concorrência e a apologia ao mérito e, por isso, é imprescindível denunciar a desfaçatez com que tais ideologias se articulam na produção de sujeitos marginalizados. Todo educador crítico comprometido com a justiça social deve, por isso, posicionar-se contra todo este sistema de ideologias que governam nossa realidade a partir de mistificações.

Há de se notar, ademais, que não é fácil manter estável uma situação de desigualdade declarada em que poucos concentram muito poder (propriedade, capital e acesso aos meios de produção), enquanto muitos possuem pouco ou nada disso. À educação, Russell (1957:125) atribui uma enorme parcela de responsabilidade pela manutenção de tal estabilidade, reconhecendo que existem “inúmeras maneiras por que a educação, em vez de propiciar conhecimento verdadeiro, é engendrada para tornar o povo dócil à vontade dos seus amos”. Mais gravemente, complementa sua denúncia com a constatação de que “sem um complicado sistema de fraude nas escolas primárias seria impossível conservar a camuflagem de democracia”: trata-se de um modo de pensar bastante semelhante àquele que orientou a concepção de ideologização, descrita em Freire e Shor (1986). Sob essa perspectiva, é fundamental, para Russell (1956:169), desvelar que “tem sido o costume da educação favorecer o próprio Estado, a própria religião, o sexo masculino e os ricos”, aos quais acrescentaríamos, sem dúvidas, “os brancos”.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não vislumbramos modo melhor de iniciar as considerações finais deste artigo do que recorrer à seguinte citação russelliana: “o ditado que a natureza humana não pode ser mudada é uma daquelas banalidades cansativas que ocultam dos ignorantes a profundidade de sua própria ignorância” (Russell, 1951:161). Isso porque, dado que a humanidade encontra-se, como um todo, imersa nas mistificações e ideologias oriundas do capitalismo, torna-se tentador admitir que não exista caminho para a autêntica transformação.

Há de se convir, entretanto, que, como Russell procurou demonstrar em muitas obras, a humanidade recuperou-se historicamente de terríveis despautérios e não há indícios de que a mudança seja, de fato, impossível nos dias que vivemos, senão nos argumentos daqueles que, por inércia, desejam seguir o caminho perverso em que caminhamos desolados. Os caminhos existem: devemos encontrá-los.

Toda transformação que pretenda ensejar o novo, efetivamente, revela-se árdua, mas não devemos hesitar ou desistir devido à aspereza do caminho em que perseguimos nossas convicções. Como educadores e indivíduos comprometidos com a justiça social, é preciso desnaturalizar as pretensas verdades do capitalismo. É preciso, como procurou Freire, evidenciar o desamor deste sistema pela humanidade e isto, como também nos ensinou o educador, só pode ser feito aos poucos, com muita paciência.

Nosso propósito, neste texto, consistiu na evidenciação do desamor do capitalismo em suas ideologias e mistificações. Afinal, a todo educador crítico delega-se a indelével tarefa de desmistificar a realidade. Em nosso caso, tal objetivo se concretizou nas tentativas de demonstrar de que maneira a educação se subordina ao mito da democracia racial e também corrobora sua existência ao justificar, por meio da apologia ao mérito, seus enunciados. A educação e as escolas tornam-se, nestes termos, responsáveis pela existência das condições desiguais que não ajudam a criticar quando sustentam discursos e práticas impregnados da ideologia do mérito.

Qualquer educador comprometido com a justiça social deve prevenir-se de tais mistificações: seu discurso e suas práticas devem permanecer incólumes às inúmeras distorções engendradas pelas ideologias promovidas pela racionalidade capitalista. Afinal, apenas um educador, nestas condições, pode, de fato, desobscurecer a realidade de seus educandos.

REFERÊNCIAS

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